Burocracia é inimiga do crédito
Para que o sistema financeiro funcione de maneira justa e eficiente para credores e devedores, é essencial que haja segurança jurídica nas relações contratuais e rapidez na solução de inadimplências.
De modo geral, é o que estabelece o chamado marco legal das garantias, lei de iniciativa do governo Jair Bolsonaro (PL), em 2021, e apoiada pela gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) até a sua sanção em 2023.
O diploma buscou desburocratizar a execução de dívidas, diminuindo riscos para o credor e, por consequência, o custo do crédito.
Na sexta (10), entretanto, Dias Toffoli, ministro do Supremo Tribunal Federal, mudou seu próprio entendimento anterior e votou pela inconstitucionalidade de um dispositivo da lei —contradição que tem sido comum não apenas em decisões de Toffoli, mas de outros juízes da Corte. A medida temerária adiciona camadas de burocracia onde não haveria necessidade.
Está em disputa o artigo do marco legal que autorizava a execução extrajudicial de veículos dados como garantias em contratos de financiamento diretamente pelos departamentos estaduais de trânsito.
A favor da competência dos Detrans está a necessidade de evitar a morosidade do sistema de Justiça e de prover segurança aos credores. Entidades do setor de crédito e de transporte, com razão, criticaram a guinada do Supremo em relação ao tema, dado que ela contraria a eficiência a e agilidade promovidas pela lei.
Para o ministro, que é relator do caso, a competência para a execução deve ser só dos cartórios, segundo ele sujeitos a maior escrutínio judicial e supervisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Toffoli acompanhou a divergência aberta pelo ministro Flávio Dino e foi seguido por Cristiano Zanin —o julgamento foi suspenso após pedido de vista do ministro Gilmar Mendes. O zigue-zague do STF agrava ainda mais o problema estrutural de crédito no Brasil, ao reforçar insegurança e práticas obsoletas.
Sabe-se que para evitar distorções nesse setor é preciso proteger, de um lado, os direitos de credores e devedores e, de outro, zelar pela economicidade.
Especialistas apontam que em São Paulo, por exemplo, o custo elevado de execuções extrajudiciais em cartórios contrasta com o procedimento rápido e digital que poderia ser realizado pelos Detrans de forma rastreável —e, se necessário, passível de revisão pelo Judiciário. Fortalecer burocracia é retrocesso encampado no STF que encarece o crédito para toda a sociedade.
Sem equilíbrio fiscal, mais educação não garante alta da renda ou saída do Bolsa Família
Fernando Canzian / FOLHA DE SP
Os últimos dez anos foram desastrosos para os jovens da metade mais pobre do país em termos de acesso a bons empregos, apesar de a escolaridade deles ter dado um salto. Entre os que foram beneficiários do Bolsa Família, um terço permanece no programa, repetindo a trajetória de dependência do Estado que marcou a vida de seus pais.
Ao longo de 20 anos, a Folha acompanha duas famílias beneficiárias do Bolsa Família em Jaboatão dos Guararapes (PE), na comunidade Suvaco da Cobra. Elas espelham o que pesquisas sobre pobreza, educação e mobilidade revelam do Brasil em um período de ascensão econômica até 2010, a forte recessão de 2016-2017 provocada pelo governo Dilma Rousseff (PT) e a pandemia.
A trajetória dos Silva e dos Dumont revela como o ambiente macroeconômico, com contas públicas em ordem, é determinante para a ascensão dos mais pobres. As duas famílias, que progrediam até o início dos anos 2010, tiveram sonhos interrompidos a partir de 2015, quando a irresponsabilidade fiscal de Dilma fez o PIB (Produto Interno Bruto) desabar.
Naquele momento, os filhos abandonaram a ideia de entrar na faculdade e passaram a se submeter a empregos informais, afastando-os até hoje da carteira assinada. Atualmente, a maioria sobrevive com a ajuda do Estado e de programas sociais e, embora vivam em um ambiente econômico mais dinâmico, o país flerta outra vez com o descontrole orçamentário.
Em duas décadas, esses pernambucanos se multiplicaram: a família de Ronaldo e Sueli Dumont saltou de 9 para 30 membros; a de Pedro e Micinéia Silva, de 5 para 8. Entre as 18 pessoas hoje com 16 anos ou mais nos dois núcleos, só uma (Luan Silva, 27) tem um emprego formal. Os demais vivem de bicos, em salões de beleza e mercadinhos, ou são beneficiários do Bolsa Família e de outros programas estatais.
Como ex-participantes do Bolsa Família, muitos concluíram o ensino médio, cumprindo a condicionalidade de estudar. Apesar de falhas de aprendizado, como dificuldade para ler e escrever, não são analfabetos como os pais.
Mas nenhum conseguiu entrar na faculdade, como aspiravam Alan e Luan Silva até 2015 –antes de serem levados a trabalhar informalmente a partir recessão de 2016-2017.
Segundo a FGV Social, na última década os anos de estudo da metade mais pobre do Brasil saltou 22%, mas a renda aumentou apenas 4%, refletindo o difícil período econômico. Só recentemente, entre 2021 e 2024, isso mudou: o rendimento dos mais pobres aumentou 31,3%, e a escolaridade, 5,3%. Quem entrou no mercado antes disso, no entanto, tem mais dificuldade para obter um emprego formal agora.
É o caso dos filhos e filhas do casal Dumont, que trabalham em empregos informais ou vivem de recursos do Estado. A maioria das filhas de Ronaldo e Sueli engravidaram precocemente, uma delas aos 16.
Na família dos Silva, Luan também já é pai, e sua mulher tem apenas 15 anos. Nota-se, nesse aspecto, a ausência de programas de planejamento familiar.
Hoje, as duas famílias sobrevivem mais por conta da renda vinda do Estado do que pelo trabalho. Entre os Silva, Pedro, 75, é aposentado por invalidez, e seu filho mais novo, Isaac, 14, recebe um salário mínimo por ter síndrome de Down e estar enquadrado nas regras do BPC (Benefício de Prestação Continuada).
Entre os Dumont, Rafaela, 35, Priscila, 34, Roseli, 33, Kassiane, 26, Raimonte, 20, Emili, 18, e Maria Julia, 11, recebem ou o Bolsa Família (até 850) ou o BPC (R$ 1.518).
O patriarca dos Dumont, Ronaldo, 57, também pleiteia um benefício de um salário mínimo por questões de saúde. Após 12 anos trabalhando com carteira assinada, foi dispensado este ano de uma firma que faliu, deixando de pagar férias, FGTS e outros direitos aos empregados.
Em duas décadas, a evolução dos Dumont e dos Silva foi lenta, com altos e baixos que acompanharam a economia brasileira, e com forte dependência do Estado. O também pernambucano presidente Lula (PT) sempre teve a preferência eleitoral entre os membros dessas famílias, que o identificam como o criador do Bolsa Família.
Estudo o IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social) que acompanhou 15,5 milhões de jovens dependentes do Bolsa Família de 2012 até 2024 revela que um terço (33,5%) permaneceu no programa –antes, como dependentes dos pais; agora, como beneficiários principais. Mas quase a metade (48,9%) saiu do CadÚnico, em que os mais vulneráveis são registrados para usufruir de benefícios sociais.
Assim como na média do Brasil, a mobilidade social onde os Silva e os Dumont vivem é muito baixa. Segundo o IMDS, a chance de crianças nascidas na metade mais pobre em Jaboatão dos Guararapes chegarem à faixa dos 10% mais ricos quando adultos é de apenas 1,5% (1,8% no Brasil) –e supera 70% a probabilidade de se manterem na mesma metade mais pobre.
Segundo Paulo Tafner, diretor-presidente do IMDS, famílias com curta exposição (até dois anos) no Bolsa Família tiveram maior probabilidade de desligamento em 2024, sugerindo vulnerabilidade transitória. Já aquelas com longa permanência (de seis a oito anos) tenderam a permanecer mais vinculadas, reforçando a associação com a persistência da pobreza –caso das famílias em Jaboatão.
Enquanto as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste registraram taxas de desligamento mais intensas, jovens do Norte e do Nordeste apresentaram menor probabilidade de saída em relação ao Sudeste.
Criado em 2003, o Bolsa Família saltou de 3,6 milhões de beneficiários à época para 19 milhões hoje, consumindo R$ 13 bilhões mensais; 47% no Nordeste.
"O Bolsa Família não tem a virtude de fazer a superação estrutural da miséria, pois não é desenhado para isso", afirma Tafner. Em sua opinião, a chave para que os beneficiários tenham mais chance de sair da pobreza está em alguns itens cruciais: ambiente macroeconômico, a escolaridade dos pais e a infraestrutura municipal.
A ação local, diz, é fundamental, pois o município é o "melhor operador" por estar próximo aos beneficiários. "Fatores como a existência de biblioteca, escola de qualidade e saneamento no município têm sido historicamente associados à saída da armadilha da pobreza", diz.
Tafner destaca o papel "devastador" do cenário macroeconômico, como a crise de 2016-2017. "Se adolescentes na fase de entrar no mercado não conseguem um trabalho formal, a trajetória de informalidade subsequente pode ser definitiva", diz.
Os anos mais recentes, no entanto, têm sido mais promissores para esses beneficiários. No Suvaco da Cobra, dezenas de comércios têm florescido não só pela incidência alta do Bolsa Família, mas pelo seu grande efeito multiplicador.
Segundo Marcelo Neri, diretor da FGV Social, entre 2022 e 2024 houve aumento real (acima da inflação) de 45,8% na renda do Bolsa Família (levando em conta valores e quantidade). Foi na campanha eleitoral de 2022 que o programa deu um salto, passando a 21,6 milhões de cadastrados a fim de o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) atrair eleitores, a quem prometeu também (assim como Lula) elevar o valor do benefício.
"O aumento da renda via programas sociais como Bolsa Família e BPC foi muito forte. Mas não só. Há o efeito multiplicador dessas ações, e o fato de os brasileiros estarem empregados e trabalhando como nunca", diz Neri.
Para cada R$ 1 gasto com o Bolsa Família, são gerados cerca de R$ 1,80 no entorno, segundo projeções a partir de pesquisas do IBGE. Isso acaba alimentando comércios locais, como a loja de materiais de construção de Osvaldo Morais, no Suvaco da Cobra, que atende a comunidade, inclusive com financiamentos informais.
O dinamismo mais recente da economia também tem levado muitos a saírem do programa em direção ao mercado formal. Outros dados agregados desmentem a narrativa de que beneficiários do programa recusam-se a trabalhar.
"Onde tem Bolsa Família é justamente onde o emprego formal tem crescido mais, sobretudo no setor de serviços", afirma Marcos Hecksher, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
"A dificuldade que alguns empresários às vezes relatam tem mais a ver com as pessoas hoje terem algo para sobreviver [o Bolsa Família], e não estarem dispostas a trabalhar em troca de salários medíocres."
Segundo o MDS (Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome), no primeiro semestre deste ano 712 mil beneficiários do Bolsa Família arrumaram empregos com carteira assinada. Em 2024, entre os novos contratados, 1,3 milhão era integrante do programa.
Lula, o PT e o Congresso
O governo Luiz Inácio Lula da Silva trouxe alívio à vida política e institucional do país ao pacificar as relações do Planalto com o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional. Com o primeiro, a proximidade pode ter ido além da conta; com o segundo, mesmo sem maioria parlamentar segura, o petista soube manter diálogo e negociação —ao menos até há pouco.
Na quarta-feira (15), Lula achou por bem fazer uma crítica desqualificante à atual legislatura em ato público e ao lado do presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos-PB). "Hugo é presidente desse Congresso e ele sabe que esse Congresso nunca teve a qualidade de baixo nível como tem agora."
"Aquela extrema direita que se elegeu na eleição passada é o que existe de pior", completou o presidente da República, alegrando a plateia amistosa povoada por professores, no Rio de Janeiro.
Deixe-se de lado o fato de que Motta, vaiado no evento, não preside o Congresso, o que cabe ao chefe do Senado. É difícil dizer se Lula deixou-se levar pelo entusiasmo durante o improviso ou se calculou previamente o impacto da declaração. É certo, de todo modo, que ela se deu num contexto de animosidade de seu partido contra o Legislativo.
De alguns meses para cá, o PT tem tratado as resistências de parlamentares a propostas governistas de aumento de impostos como defesa de interesses milionários ante tentativas de promover justiça social. Essa campanha, que tem muito de farsesca, foi reavivada recentemente depois da derrubada de uma medida provisória que buscava R$ 20,9 bilhões em novas receitas para 2026.
É evidente que o presidente da República tem o direito de expressar suas opiniões —a questão é quando convém fazê-lo diante das responsabilidades do cargo. A retórica de confronto anima a militância, mas é inútil, se não contraproducente, quando se precisam aprovar projetos num Parlamento onde as forças à esquerda não chegam a 25%.
Lula não questionou a legitimidade do Legislativo, mas petistas caminham em terreno perigoso ao demonizar o Congresso como "inimigo do povo" —o partido, aliás, é useiro e vezeiro em radicalizar o discurso nos momentos de adversidade.
Se pode ajudar a disputar eleições, a polarização política atrapalha sobremaneira a tarefa de governar. Resta um ano até o pleito de 2026 e haverá medidas dificílimas a tomar no quadriênio seguinte, qualquer que seja o vencedor. Da perspectiva de Lula, nada indica que a próxima legislatura vá ser mais amigável que a atual.
Governo gastador paga mais ao mercado
Em um cenário global de alívio monetário, o Brasil se mantém preso a juros estratosféricos, em razão, fundamentalmente, do desajuste orçamentário do governo federal.
A administração petista promove mais gastos e promessas eleitoreiras, enfraquece o arcabouço fiscal que nem completou dois anos de vigência e permite que a dívida pública se aproxime de 78% do Produto Interno Bruto —no ritmo atual, estima-se que ela subirá até 95% em 2033.
Esse descontrole erode a confiança dos investidores e impõe um prêmio de risco que encarece o financiamento do déficit persistente da União. Não por acaso, o Tesouro Nacional paga hoje 8% ao ano mais a inflação nos títulos indexados ao IPCA com vencimento em 2029 e 7,7% nos papéis com prazo até 2035.
São taxas superiores às do fechamento do ano passado, quando a cotação do dólar estava em R$ 6,17, muito acima dos R$ 5,40. Um país cuja economia cresce a 3% ao ano ou menos não tem como suportar tais encargos por tempo indeterminado.
A pressão altista sobre o custo do dinheiro de médio e longo prazo ainda tem sido acentuada por emissões de títulos privados incentivados, entre eles as debêntures de infraestrutura isentas de Imposto de Renda. Projetadas para fomentar investimentos em estradas, ferrovias e saneamento, as emissões têm atraído maior demanda, graças às melhorias regulatórias dos últimos anos.
Para o mercado, trata-se opção atraente devido à alíquota zero de IR, ante a taxação de 15% a 22,5% nos títulos públicos. Na prática, há uma competição com os papéis do Tesouro, que assim precisa pagar algo mais para rolar sua dívida —e, diante da alta nas taxas, reduziu o volume de leilões nas últimas semanas.
A situação poderia ser ainda pior se não tivesse caído, na semana passada, a mais recente medida provisória de elevação de impostos do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Nas negociações com a Câmara dos Deputados, o Executivo havia concordado em manter os incentivos à parte dos papéis privados e elevar a taxação sobre outros, agravando a assimetria atual.
A tributação das aplicações financeiras continuará sendo objeto de debate necessário, mas a solução essencial para os problemas de financiamento do Tesouro é o controle da gastança do governo, o grande aspirador que suga a poupança nacional e mantém os juros elevados.
Na América Latina e na Ásia, as taxas têm caído, seguindo a expectativa de cortes nos juros americanos, que devem chegar a 3% ao ano até meados de 2026, de acordo com as projeções atuais.
No Brasil, enquanto isso, a Selic segue em 15% com diminuta perspectiva de corte, para algo entre 12,5% e 13% no final do próximo ano. Isso significa o pagamento de mais de R$ 840 bilhões aos credores da dívida federal apenas nos últimos 12 meses —o que inclui um grande presente para os famigerados rentistas.
Lula sobe no salto e rebaixa a Presidência
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a confundir sua posição de chefe de Estado e de governo com a de líder de facção política. Ao afirmar, diante do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que o Congresso “nunca teve o baixo nível como tem agora” e que a “extrema direita que se elegeu em 2022 é o que existe de pior”, Lula não só cometeu uma descortesia institucional, como afrontou o princípio basilar da democracia representativa: o respeito à legitimidade das urnas.
O discurso foi proferido em ambiente confortável, um evento pelo Dia dos Professores no Rio de Janeiro, diante de uma plateia simpática ao presidente da República e ao PT. Lá, à vontade entre apoiadores históricos, Lula fez o que sabe fazer melhor: transformar um ato oficial em palanque eleitoral. O antagonismo com o Congresso certamente será uma das linhas de sua campanha pela reeleição em 2026. O discurso maniqueísta está pronto: de um lado, o “povo”, que Lula diz representar; de outro, as “elites”, encarnadas nas instituições que impõem limites ao seu voluntarismo ou simplesmente não seguem a cartilha petista.
Com seus erros e acertos, o Congresso é a expressão da pluralidade social e política do País. Seus 513 deputados e 81 senadores foram eleitos pelo voto popular e gozam da mesmíssima legitimidade da qual está investido o sr. presidente da República. Nesse sentido, o Congresso não é “bom” nem “ruim” por natureza; apenas é o que é, reflexo das escolhas dos eleitores. Portanto, ao desqualificá-lo em bloco, Lula desrespeita não apenas os parlamentares que não comungam de sua ideologia, mas também os milhões de brasileiros que os elegeram.
É natural que Lula discorde de posições assumidas por parte do Congresso, sobretudo da Câmara, que, sob nova direção, tem imposto derrotas ao governo e aprovado medidas de autoproteção que soam escandalosas à opinião pública. A aprovação da chamada PEC da Blindagem, que levou milhares de cidadãos às ruas em protesto no dia 21 de setembro, é exemplo disso. Mas discordar é uma coisa, desqualificar é outra. Cabe ao chefe do Executivo se portar com a serenidade e o senso de responsabilidade que seu cargo exige, e não fomentar o descrédito em uma instituição quando esta contraria seus desejos ou não se alinha às suas visões de mundo.
A descortesia de Lula com Hugo Motta, a quem atribuiu erroneamente a presidência do Congresso – cargo que pertence ao senador Davi Alcolumbre (União-AP) –, é mais do que uma “gafe”. É um sintoma da soberba de quem parece ter se deixado inebriar pela retomada da popularidade e pela conveniência política de ter os bolsonaristas, que sofrem alta rejeição, como adversários preferenciais. A imposição de sanções políticas e econômicas ao Brasil pelos EUA tem sido explorada por Lula como a oportunidade perfeita para voltar à retórica do confronto: ele, o líder do “Brasil soberano”, contra as forças do atraso que conspiram contra o País – as quais o presidente, genericamente, empacota como “extrema direita”.
Ocupadíssimo com a campanha eleitoral, o presidente parece ter esquecido que tem um país para governar. E, para isso, não pode prescindir do Congresso. Lula governa em um regime presidencialista multipartidário, que ele conhece bem como poucos. Não é possível aprovar reformas, avançar em políticas públicas nem ao menos fingir buscar a estabilidade fiscal sem construir pontes com as forças políticas presentes no Legislativo – de todos os matizes.
O discurso do confronto institucional, além de irresponsável, isola o governo em um momento em que a economia clama por cooperação entre os Três Poderes. A agenda de equilíbrio fiscal, a reforma administrativa e a segurança pública, entre outras pautas prioritárias para o País, exigem pactos que, por óbvio, não virão dos insultos. Ao subir no salto e atacar genericamente o Congresso, Lula não enfraquece seus adversários políticos – rebaixa a própria Presidência da República.
É sintomático que Lula tenha escolhido um palanque cercado por apoiadores para expressar seu desrespeito por um Poder. Surdo pelos aplausos fáceis, deu vazão à empáfia de quem já se vê reeleito e, portanto, pode prescindir de alianças. Azar do País.
É urgente retomar território crescente em poder do crime
Por Editorial / O GLOBO
O domínio de vastas extensões do território brasileiro por facções criminosas e milícias tem se agravado. Praticamente um em cinco brasileiros (19%) diz conviver com o crime em sua vizinhança, segundo pesquisa Datafolha encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). São ao menos 28,5 milhões de cidadãos expostos ao crime organizado. No levantamento anterior, do ano passado, eram 23 milhões, ou 14% da população. Os dados refletem, no entender de Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do FBSP, a ampliação e o controle de territórios e mercados pelas facções.
A presença dos grupos criminosos é mais sentida em cidades com mais de 500 mil habitantes, capitais e municípios do Nordeste. O crime, diz a pesquisa, cerca tanto os moradores de baixa renda (19%) quanto os de renda mais alta (18%). Mais de um quarto (27%) da população dessas áreas afirma conhecer cemitérios clandestinos, onde são sepultados mortos que não aparecem nas estatísticas oficiais.
A pesquisa traduz a maior angústia que aflige os brasileiros. O cenário se revela em saraivadas de tiros nas guerras entre quadrilhas, na interdição de vias importantes em decorrência da violência, no fechamento constante de escolas e unidades de saúde, na cobrança de taxas ilegais, no medo que impõe mudanças de comportamento, restringindo o direito de ir e vir.
Os métodos usados até agora não têm dado resultado contra o crime organizado, a despeito dos altos investimentos em segurança. Não dão conta de facções cuja atuação ultrapassa a divisa dos estados e as fronteiras do país. Só serão combatidas com engajamento do governo federal e ação conjunta e coordenada de todas as forças da lei.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança, que tramita no Congresso, é um primeiro passo no rumo certo. Ela amplia a participação do governo federal no combate a facções e milícias, aumenta as atribuições das polícias Federal e Rodoviária Federal, reforça o financiamento, unifica bases de dados e propõe ações integradas sob coordenação federal. A oportunidade não pode ser desperdiçada. Divergências com os estados, que temem interferência de Brasília, não podem travar projeto tão relevante. Parlamentares podem até aperfeiçoar o texto, como quer o relator, deputado Mendonça Filho (União-PE), ao vetar a progressão de regime para líderes de facções. Mas sua essência precisa ser mantida.
É fundamental também que o governo acelere o pacote antimáfia, que ganhou relevância após a operação que expôs a infiltração do crime no mercado formal, usando postos de gasolina e instituições financeiras para lavar dinheiro. As ações previstas incluem aumento de penas e atualização da legislação para tornar mais célere a investigação de organizações criminosas.
É urgente que essas propostas avancem. A situação é crítica — e se agrava a cada dia. Um levantamento do GLOBO mostrou que o Brasil tem pelo menos 64 facções criminosas espalhadas pelas 27 unidades da Federação. Cada vez mais, elas se infiltram em atividades formais. A população está assustada. A preocupação do brasileiro com segurança pública tem crescido e se consolidou como a maior de todas, bem à frente de economia e saúde, revela a última pesquisa Quaest. Quanto mais tempo governo e Congresso levarem para agir, mais difícil será retomar os territórios do crime.
Educação precisa de gestão e realismo orçamentário
O relatório do Plano Nacional de Educação para o período de 2026 a 2035, apresentado na Câmara dos Deputados na terça-feira (14), contém objetivos meritórios, mas, assim como o PNE que findou em 2024, trata a questão orçamentária de modo irrealista.
Dados a estagnação dos indicadores nacionais de aprendizagem em níveis precários na última década, algumas experiências regionais exitosas e o montante não desprezível de dinheiro público destinado ao setor, resta claro que, mais do que aumento de verbas, a melhora da qualidade exige principalmente alocação racional do que já está disponível.
O projeto do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) enviado ao Congresso Nacional previa elevar a despesa de União, Estados e municípios no ensino, hoje em torno dos 5% do PIB, para 7% até o sexto ano de vigência do plano e fantasiosos 10% até ao final. Era a mesma meta estipulada no PNE de 2014 —por óbvio não atingida, porque leis não fazem brotar dinheiro.
Na Câmara, a cifra foi reduzida para 7,5% ao final do período, com um acréscimo imaginado de 3,5% em aportes privados, totalizando 11% do PIB. Mas os 7,5% tampouco são realistas, considerando as severas restrições orçamentárias do país.
A verba pública direcionada à educação no Brasil é compatível com os padrões internacionais, o que evidencia correta prioridade atribuída a um setor essencial. Os aportes correspondem a 11% dos serviços totais do Estado, pouco acima da média da OCDE (10%), que reúne países desenvolvidos.
Ademais, deve-se considerar a transformação demográfica. A diminuição progressiva da natalidade faz e continuará fazendo com que o gasto por aluno aumente, mesmo que não haja expansão do gasto total.
O papel da modernização da gestão, com foco no aprendizado, se verifica em comparações regionais. Dados do Ministério da Educação (MEC) mostram que a taxa de alunos alfabetizados no 2º ano do ensino fundamental de São Paulo em 2024 foi de 58%, próximo da média nacional (59%), mas muito abaixo da medida no Ceará (85%), estado bem mais pobre.
O novo PNE estipula objetivo de 80% de crianças alfabetizadas nessa série até 2030 e de 100% até 2035; o anterior previa 100% no 3º ano da etapa em 2024. Das 10 metas do PNE de 2014, só 4 foram ao menos parcialmente cumpridas.
Planos de longo prazo exigem monitoramento regular para a obtenção de resultados, e a educação brasileira apresenta problemas crônicos nessa seara.
Assim, é bem-vindo o artigo que prevê que as metas do PNE sejam monitoradas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), ligado ao MEC, com a publicação bienal dos índices de alcance por unidades da Federação.
De todo modo, as boas intenção de uma lei formulada em Brasília dependerão de boas práticas de gestão do dinheiro do contribuinte por estados e municípios.
PF deflagra nova fase de operação sobre desvios em emendas e afasta prefeito na Bahia
A PF (Polícia Federal) deflagrou nesta quinta-feira (16) a sétima fase da Operação Overclean, que mira desvios de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro com recursos de emendas parlamentares.
Foram cumpridos seis mandados de busca e apreensão, uma medida cautelar de afastamento de agente público do cargo e o sequestro de valores obtidos de forma ilícita, nas cidades de Salvador, Riacho de Santana e Wenceslau Guimarães, na Bahia, e em Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro.
O prefeito de Riacho de Santana (720 km de Salvador), João Vítor Laranjeira (PSD), foi afastado do cargo por determinação do STF (Supremo Tribunal Federal). Já o de Wenceslau Guimarães (155 km da capital), Gabriel de Parisio (MDB), foi alvo de busca e apreensão.
A reportagem não conseguiu contato com as defesas dos dois. As duas cidades têm, respectivamente, 35 mil e 24 mil habitantes.
João Vítor Laranjeira (PSD) e Gabriel Parisio (MDB) são aliados políticos do deputado federal Dal Barreto (União Brasil), que foi alvo de busca e apreensão na fase anterior da operação na última terça-feira (14).
O parlamentar teve o seu telefone celular apreendido pela polícia. Em nota, ele disse que não havia tido acesso ao inquérito policial e que estava à disposição da PF para colaborações.
De acordo com a polícia, o objetivo da operação é desarticular uma organização criminosa suspeita de envolvimento em fraudes licitatórias, desvio de recursos públicos, corrupção e lavagem de dinheiro.
Os investigados poderão responder pelos crimes de organização criminosa, corrupção ativa e passiva, peculato, fraude em licitações e contratos administrativos, além de lavagem de dinheiro.
As apurações da Overclean apontam a atuação de um grupo criminoso que teria atingido o Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas), órgão ligado ao Ministério da Integração Nacional, especialmente na Bahia.
O grupo, segundo a PF, teria direcionado recursos de emendas parlamentares e convênios para empresas ligadas a administrações municipais, com superfaturamento de obras e desvios financeiros. Ele teria movimentado cerca de R$ 1,4 bilhão em contratos fraudulentos e obras superfaturadas.
O inquérito, que tem entre os seus principais alvos pessoas ligadas ao União Brasil, foi para o Supremo por citar o deputado federal Elmar Nascimento, que representa o partido pela Bahia.
Também já foram alvos pessoas próximas ao grupo político do prefeito de Salvador, Bruno Reis. As apurações levaram ao afastamento do secretário de Educação de Belo Horizonte, Bruno Barral, que foi titular da mesma pasta em Salvador na gestão do ex-prefeito ACM Neto.
Apagão de vergonha
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Horas após o incêndio no reator de uma subestação do Paraná deixar todas as regiões do País sem energia na madrugada do dia 14 passado, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, agiu como legítimo representante de um governo petista: minimizou o problema e usou o caso para fazer campanha eleitoral, ao comparar com apagões nos governos de Fernando Henrique Cardoso e Jair Bolsonaro.
O incêndio ocorreu à 0h32 e, segundo a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), o fornecimento de energia só foi integralmente restabelecido no País por volta das 3h. O tempo de interrupção variou por região, mas, se tivesse ocorrido em horário de pico, os prejuízos seriam mais drásticos. Não foram, e a isso Silveira aferrou-se para declarar, no programa de rádio Bom Dia, Ministro, da rede oficial EBC, que “o dano foi pontual”, contido pela “robustez do sistema”.
Não é bem assim. É claro que mecanismos de segurança foram acionados para cortar o fornecimento de eletricidade e evitar estragos maiores, da mesma forma como um disjuntor desarma a corrente elétrica de uma residência em caso de sobrecarga e evita curtos-circuitos. Mas foi uma questão de sorte o acidente ter ocorrido em horário conhecido como “fora de ponta”, quando a maioria das pessoas está dormindo ou em atividades de baixo consumo de energia.
Ademais, o que se espera da confiabilidade de um sistema nacional interligado, como o brasileiro, é que as consequências de um evento regional fiquem isoladas àquela região. Muitos especialistas se disseram surpresos com o fato de que um problema em apenas um reator desligou a usina inteira e seguiu em efeito cascata com o desligamento total de linhas que conectam usinas do Sul ao Sudeste, espalhando danos pelo Centro-Oeste, Norte e Nordeste. E não foi a primeira vez. Em 2023, primeiro ano do terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma falha em parques eólicos e solares do Ceará deixou quase todo o País às escuras.
Mas o ministro Alexandre Silveira preferiu sair à petista: ao invés de encarar o ocorrido com transparência, assumindo responsabilidades e procurando firmar garantias de que episódios como esse não irão mais acontecer, escolheu lembrar de apagões ocorridos em governos aos quais o PT fazia oposição. “Quando se fala em apagão, a gente se sempre lembra dos tristes episódios de 2001 e 2021, que na verdade aconteceram por falta de energia e de planejamento. Hoje não. Hoje nós temos muita energia”, disse.
E foi além, argumentando que a população precisa entender que hoje não há falta de energia, mas problemas na infraestrutura que transmite a energia. Ora, falhas em transmissão ou distribuição, manutenção deficiente ou produção insuficiente levam ao mesmo problema: cortes no fornecimento de energia que, pela extensão, podem se traduzir em apagão. E tudo, ao fim e ao cabo, é uma ques
A inútil retaliação governista
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Com a amargura de quem sofreu nova desonra política em votação de alta relevância no Congresso, os articuladores políticos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva iniciaram a única retaliação que aparentemente lhes restava: exoneraram cerca de 380 indicados de partidos de centro que ocupavam cargos comissionados em ministérios e autarquias. Na lista de demitidos há uma centena de nomes filiados ao União Brasil e ao MDB, e dezenas de indicados por PSD, PP e Republicanos, legendas que, embora oficialmente integrem a base governista, frequentemente votam contra pautas de interesse do Palácio do Planalto – uma contradição levada ao paroxismo na recente votação da Medida Provisória 1.303, a MP dos impostos. É um movimento para “reorganizar a base”, disse a ministra Gleisi Hoffmann. “Quem está sendo leal ao governo tem que ser valorizado e quem não está não tem por que ficar”, justificou.
É hora de deixar de lado os eufemismos palacianos. Descontada a explicitação do tradicional “toma lá, dá cá” sobre o qual se assentam as práticas rotineiras em Brasília – cargos e verbas em troca de votos –, o episódio ampliou ainda mais a já extensa lista de reveses do governo na conturbada relação com o Congresso e sua base. As sucessivas goleadas sofridas revelam verdades inconvenientes que Lula e seu entorno tentam esconder. A principal delas é que não existem vítimas nem algozes nesse enredo: tem-se uma base de apoio ao governo no Congresso que já há algum tempo se apresenta como peça de ficção, um governo que opera sem instrumentos de navegação política, um presidente incapaz de manejar sua coalizão com eficiência e uma maioria legislativa que, dotada de superpoderes no controle do Orçamento da União, passou a ignorar com cada vez mais atrevimento as diretrizes do Executivo.
A retaliação, no fundo, só espelha o próprio fracasso do governo. Atônito por não saber lidar com a nova realidade, tende a explicar a própria inépcia com a infidelidade da base e os interesses do Centrão. Como se sabe, partidos como União Brasil e PP, divididos entre o desejo de manter nacos de poder e a perspectiva eleitoral do ano que vem, quando devem sair abraçados a candidatos de oposição, tentaram instituir algo impensável até mesmo para os padrões elásticos de coerência ideológica e partidária do País: o governismo de oposição. E assim, enquanto ocupam oficialmente a base governista e usufruem dos cargos e verbas de ministérios e estatais, difundem críticas públicas ferozes ao governo que supostamente representam e trabalham por candidaturas oposicionistas.
Mas isso não desfaz o diagnóstico de que o problema é menos de disfuncionalidade entre os dois Poderes e muito mais a má gestão da coalizão. O maior controle orçamentário pelo Legislativo inflacionou o custo político, mas o fato é que não o inviabilizou. O maior prejuízo governista decorre, isso sim, das escolhas do governo. Afinal, o PT, sempre fiel a si mesmo, optou por uma coalizão ampla, com 16 partidos e forte heterogeneidade ideológica, mas não aprendeu a dividir o poder. Controla 15 entre 38 ministérios, enquanto seus principais parceiros – PSD, MDB e União Brasil, cuja cúpula acaba de desistir oficialmente de ser governo – dominam apenas três pastas cada. Completa o ciclo a promessa de uma “frente ampla” jamais cumprida, um mandato mais petista do que nunca e a vocação para a esperteza em matéria fiscal e tributária, o que deu a deixa para que parte do Congresso, formado em grande medida por cupins do Orçamento público, apresente-se como vestal do gasto público.
O resultado foi mapeado por recente reportagem do Estadão: o terceiro mandato de Lula exibe o pior aproveitamento no Congresso desde 1988, tendo transformado em lei apenas 62 das 239 propostas enviadas ao Legislativo. É uma taxa de sucesso de 25%, modesta ante os antecessores, incluindo até mesmo Dilma Rousseff, reconhecida pela incompetência no trato com parlamentares. Enquanto isso, Lula – aquele até pouco tempo visto como encantador de serpentes – assiste inerte. E assim só lhe resta a retaliação, gesto inevitável porém tardio e de pouco efeito prático para o que mais importa ao governo.