Fazer oposição não é traição
Dora Kramer / Jornalista e comentarista de política / FOLHA DE SP
Ninguém precisa ensinar a Luiz Inácio da Silva (PT), presidente três vezes, que governar é uma coisa e fazer campanha é outra, embora ele insista em exercer as duas atividades como se fossem a mesma coisa.
Ele se vale de dois fatores: a habilidade de candidato e a benevolência mais ou menos geral decorrente da memória do mito do operário que virou chefe da nação. Mas há momentos, e este está com jeito de ser agora, em que é preciso fazer escolhas.
Governistas dizem nos bastidores que, depois da derrota da semana passada na Câmara, Lula quer recompor a base de apoio parlamentar. Ao mesmo tempo, presidente e ministro da Fazenda vão aos microfones praticamente chamar os congressistas de traidores da pátria.
Pois tem algo de paradoxal aí. Ou bem o presidente pretende reatar relações produtivas com os parlamentares ou o candidato segue a estratégia de tratá-los como adversários para ganhar pontos com a população corretamente irritada com condutas e decisões inaceitáveis num Legislativo que se preze.
A derrubada de uma MP além de não ser fato inédito é prerrogativa assegurada na Constituição. No caso específico, o governo já havia sido avisado de que aumento de impostos não passaria no Congresso. Isso foi desenhado em junho, na recusa do decreto de novas alíquotas para o IOF.
Presidente Lula e ministro Fernando Haddad (PT) trataram a questão como crime de lesa-pátria. Na visão deles, a oposição inviabiliza o país por razões político-eleitorais.
Ninguém precisa ensinar ao PT o que é fazer oposição. Mas é bom recordar que a derrota dita lesiva foi sobre uma MP, enquanto os petistas, se maioria fossem há mais de 30 anos, o Plano Real teria sido rejeitado. Votaram contra, assim como fizeram com a privatização das telecomunicações. Só para citar dois pontos que de fato prejudicariam o Brasil, se prevalecesse a ótica do atraso.
Mas, tudo bem, assim é. Portanto, o governo não pode sonhar com a unanimidade e reverência de todos porque isso não é do embate democrático.
Michelle ataca Lula e Janja em evento do PL Mulher em Goiás e diz que esquerda é 'maldita'
/ folha de sP
A ex-primeira dama Michelle Bolsonaro atacou o presidente Lula (PT) e a primeira-dama Janja durante evento do PL Mulher em Rio Verde (GO), neste sábado (11).
A presidente nacional do PL Mulher se referiu aos dois como "casalzinho que demoniza Israel, mas que agora começou a frequentar as igrejas". Michelle chamou mais de uma vez a esquerda de "maldita", "ordinária" e que "promove a destruição". A ex-primeira-dama é uma das lideranças do partido com expressão nacional e dialoga bem com o setor evangélico conservador.
A esposa de Jair Bolsonaro (PL) fez referência à ida de Janja à Basílica de Nossa Senhora de Nazaré, em Belém (PA). A primeira-dama publicou nesta sexta-feira (3) um vídeo em que aparece rezando com o presidente Lula após problemas no avião que levaria a comitiva presidencial ao arquipélago do Marajó.
Michelle disse que Lula é um "gastador de primeira" e que "alguém paga" pelo crescimento da arrecadação. "Mexe no prato da família, no arroz, no feijão, na proteína daqueles que mais precisam.
"Mexe no prato da família, no arroz, no feijão, na proteína daqueles que mais precisam. Eu sei que Deus permitiu esse momento para mostrar que quando o justo governa, o povo se alegra, e quando o ímpio governa, a nação geme. E é isso que tem acontecido com tantos impostos", afirmou.
Segundo ela, Lula deveria seguir o exemplo do ex-presidente do Uruguai José Pepe Mujica. "Esse sim era um socialista raiz, dente podre, carro caindo, meu amigo falou que ele tinha acho que era um fusca, um fusca caindo aos pedaços, casa ferrada, aí sim", disse ela, que se referiu ao presidente como um "socialista que só quer viver no luxo às custas do dinheiro do contribuinte".
Defesa de Bolsonaro e eleições
A ex-primeira-dama voltou a repetir que seu marido é vítima do sistema. Cotada para uma possível chapa ao Planalto com Tarcísio de Freitas (Republicanos) em 2026, Michelle disse que "eleição sem Jair Bolsonaro não existe".
"Ele continua sendo o único líder da direita candidato à Presidência da República, porque o que ele está passando é uma injustiça muito grande", afirmou. O ex-presidente está inelegível até 2030 por decisão do TSE.
Michelle contou que fala para Bolsonaro manter a "cabeça erguida, cuidar da saúde e se aproximar de Deus". Segundo ela, em casa, ela diz para o ex-presidente que a "tornozeleira na sua perna não é sobre você, é sobre um sistema, sobre a podridão da política". Bolsonaro está em prisão domiciliar há mais de dois meses.
Diferentes estados têm realizado eventos do PL Mulher. Na semana passada, Michelle passou por Ji-Paraná, em Rondônia. No palco de hoje havia mais homens (nove) nas cadeiras reservadas do que mulheres (oito). Os espaços foram ocupados por deputados, senadores, vereadores e lideranças do PL Mulher.
Em seu discurso, a ex-primeira-dama disse que os homens estavam presentes porque o PL faz "política colaborativa". "Quem demoniza a figura masculina, a figura do homem, são as feministas. Nós somos mulheres femininas que queremos trabalhar em conjunto, amamos os nossos maridos, nossas famílias", completou.
Cidadã Honorária
Honraria foi entregue para a ex-primeira-dama durante o evento. O título de cidadã honorária, proposto pelo então deputado estadual Fred Rodrigues (hoje ele é vice-presidente do PL no estado), foi aprovado na Assembleia Legislativa de Goiás em setembro de 2023 e sancionado à época pelo governador Ronaldo Caiado (União Brasil).
Durante a entrega, Michelle foi exaltada nos discursos. "Esse título é a gratidão dos goianos para a senhora pelo seu trabalho. A senhora tem sido inspiração para todos nós, mas especialmente para as mulheres do Brasil", disse o deputado estadual Major Araújo (PL).
A um mês da COP30, confira os desafios do Brasil para liderar a agenda climática
ISTOÉ COM AGENCIA BRASIL
Dentro de exatamente um mês, grande parte dos olhos do mundo estarão voltados para a região Norte do Brasil, mais especificamente a região amazônica. Em 10 de novembro, começará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), em Belém.
O encontro internacional na capital paraense seguirá até o dia 21. São esperadas delegações de governos e organizações da sociedade civil de todas as partes do planeta para buscar soluções para o aquecimento global e a mudança climática. Enquanto a cidade faz ajustes de infraestrutura, logística e acomodações, especialistas e negociadores brasileiros se esforçam para chegar a consensos que ajudem a salvar o planeta e os povos.
Negociações
Na última semana, o secretário Nacional de Mudança do Clima do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Aloisio Lopes de Melo, uma das principais autoridades do governo brasileiro no tema, traçou os principais desafios e assuntos de interesse do Brasil, país que ocupa a presidência da COP30.
Ele participou de um encontro com representantes de instituições científicas, na sede da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), no Rio de Janeiro. “É uma responsabilidade enorme do governo brasileiro ser a presidência nesse momento tão crítico”, ressaltou.
Na ocasião, os especialistas participantes do encontro pediram mais poder de decisão da ciência na COP30. Aloisio Melo é uma das vozes que participam da elaboração do Plano Clima, a política nacional para enfrentamento das mudanças climáticas, com ações previstas entre 2024 e 2035. Com base na apresentação do secretário nacional, a Agência Brasil elaborou um guia sobre os principais desafios da presidência brasileira da COP30.
Multilateralismo
Na avaliação do secretário, o Brasil ocupa a presidência do encontro em um contexto “bastante complexo”, com conflitos políticos e bélicos, fazendo com que o primeiro desafio seja o fortalecimento do multilateralismo. “O primeiro desafio é a necessidade de afirmar esse arcabouço multilateral como necessário, fundamental e efetivo para enfrentar a mudança do clima”, afirma ele, se referindo a protocolos como o Acordo de Paris, que limita o aumento da temperatura a 1,5° Celsius (C) acima dos níveis pré-industriais.
“Tem que mostrar que é necessário, para uma ação de enfrentamento da mudança do clima, um esforço coordenado internacionalmente”, diz Melo. “Tem um bombardeio ao sistema multilateral, e essa COP tem que mostrar que esse sistema é capaz de dar resposta e de mostrar ação”, completa.
Ambição dos países
Outro desafio e a ambição dos países. Segundo ele, a base do Acordo de Paris é de países apresentando suas contribuições voluntárias para manter a trajetória de limitar o aumento de 1,5° C. “Isso depende de que os países apresentem seus compromissos e, depois, que esses compromissos sejam suficientes para nos conduzir a essa trajetória”.
Melo aponta que cerca de 50 nações entregaram Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) e aproximadamente 100 não o fizeram, mas apresentaram compromissos.
No início deste ano, o Acordo de Paris sofreu um revés, com o anúncio do então recém-empossado presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de que deixaria o tratado internacional.
Por outro lado, o Brasil revisou a Política Nacional sobre Mudança do Clima para alinhar compromissos ao Acordo de Paris e avançar rumo a emissões líquidas (diferença entre emissão e captura) de gases do efeito estufa zero até 2050.
Setor privado
O secretário nacional destaca que, no setor privado, a inovação em torno da descarbonização já é um direcionador assumido em várias indústrias e setores.
“As métricas estão claras, as estratégias e a agenda tecnológica estão bastantes definidas”.
Segundo ele, esse encontro de mundos público e privado mostra que os entes estão em movimento.
Financiamento
Mais um desafio é o financiamento, que enfrenta a necessidade de mobilizar US$ 1,3 trilhão até 2035. “São números bastante astronômicos”.
Aloisio Melo diz que “muita gente” está trabalhando nessa busca, e cita conversas que envolvem o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e ministros da pasta de outros países.
“Mas tem uma pergunta a se fazer: qual desse montante é o valor que vai ser destinado à agenda de pesquisa, desenvolvimento, inovação e implementação, ajudar os países, em especial os em desenvolvimento, a implementar efetivamente as medidas?”, questiona.
Adaptação
O secretário nacional considera que a COP30 terá o marco de “falar seriamente” sobre adaptação. “A presidência colocou isso com agenda prioritária”.
“É uma agenda muito densa em informação, conhecimento”, diz o secretário, acrescentando que a adaptação é uma prioridade também do Plano Clima brasileiro. Ele espera que a COP consiga aprovar um marco de indicadores de adaptação.
Aloisio Melo destacou que a equipe brasileira fez parte do grupo internacional que elencou a proposta de 100 indicadores globais de adaptação que deverá ser validada. “Vai ser referência para os países a partir de agora, se for aprovada”.
Transição justa
O secretário classifica a transição energética como um dos temas mais sensíveis e complexos da COP30. Ele lembra que está acordado entre os países o afastamento dos combustíveis fósseis, triplicar o uso de energias renováveis globalmente e duplicar a eficiência energética.
“A nossa perspectiva do MMA é que essa COP tem que criar o caminho para que os países definam claramente qual é o passo a passo para chegar a zero ou ao mínimo possível de uso de combustíveis fósseis”.
Aloisio pede que um acordo internacional tenha indicadores para endereçar questões socioeconômicas e fiscais relevantes.
“Países produtores, como nós, somos dependentes dessa receita, do ponto de vista para fechar conta de governo, tem impacto macroeconômico, tem impacto distributivo”, pondera.
Mas Melo é taxativo: “se não endereçarmos isso, que são 70% das emissões globais, a gente não está falando seriamente de enfrentar a mudança do clima”.
Desmatamento
Um tema que terá atenção na COP30 é a questão do desmatamento e degradação florestal. Melo cita o Fundo Tropical das Florestas (TFFF), uma espécie de recompensa para países que preservam suas florestas tropicais. “A gente vai ser aportador nesse fundo”.
Oceano
O secretário Nacional de Mudança do Clima chama atenção ainda para novos conhecimentos que precisam ser adquiridos. Ele cita o exemplo dos oceanos.
“O tema dos oceanos ganhou muita relevância ao longo do tempo, inclusive do ponto de vista da ação climática”, diz. “Mas, certamente, ainda há muitas demandas para entender melhor a interação entre oceano e clima, o que está ocorrendo com o oceano, e entender melhor os potenciais impactos para o sistema climático, mas também para os sistemas humanos”, completa.
O governo Lula e o antissemitismo
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Há poucos dias, o ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, disse à Comissão de Relações Exteriores da Câmara que o Brasil se retirou da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, na sigla em inglês), em 18 de julho passado, porque o instrumento de adesão, em 2020, estava “eivado de erros de forma”.
Segundo o ministro Vieira, não houve consulta prévia ao Congresso, razão pela qual faltou previsão orçamentária para a contribuição à IHRA (10 mil euros anuais), “deixando o Executivo brasileiro vulnerável a justos questionamentos por parte dos órgãos de controle”. O discurso em defesa da prudência no uso do dinheiro público, contudo, mal esconde o que parece ser a verdadeira motivação da retirada do Brasil da IHRA: marcar posição contra Israel.
A IHRA foi formada em 1998 com o objetivo de reforçar a educação sobre o Holocausto, diante da ignorância generalizada dos jovens europeus sobre o extermínio dos judeus na 2.ª Guerra. Logo conseguiu a adesão de diversos países, dentro e fora da Europa. Em 2016, decidiu adotar uma definição de antissemitismo para orientar o acompanhamento de ataques a judeus no mundo.
Segundo essa definição, antissemitismo é “ódio aos judeus” a partir de uma “determinada percepção dos judeus” e que se manifesta por meio de violência retórica ou física contra “indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas”. A questão central aqui é que, entre os exemplos de antissemitismo citados pela IHRA, estão alguns que dizem respeito a Israel, e é isso o que o governo brasileiro não aceita.
O chanceler Mauro Vieira expressou essa contrariedade ao apontar o que chamou de “total falta de clareza” por parte da IHRA “quanto aos limites do discurso e da ação política legítima em relação ao sionismo, a Israel e à Palestina”. Em seguida, o ministro atacou a “instrumentalização do antissemitismo para inibir críticas contra as graves violações de direitos humanos e ao Direito Internacional humanitário na Faixa de Gaza e na Cisjordânia cometidas pelo atual governo israelense”.
Ocorre que a IHRA, ao contrário do que disse o ministro Vieira, deixa claro que “críticas a Israel semelhantes às dirigidas a qualquer outro país não podem ser consideradas antissemitas”. Para a IHRA, no entanto, é antissemita quem aplica a Israel “padrões duplos ao exigir um comportamento não esperado ou exigido de nenhuma outra nação democrática” e “estabelece comparações entre a política israelense contemporânea e a dos nazistas” – que é exatamente o que o governo Lula faz.
Mas o chanceler Mauro Vieira escolheu ignorar as nuances do conceito de antissemitismo formulado pela IHRA e partiu para uma interpretação ardilosa, ao dizer que “aceitar que a crítica às políticas adotadas por Israel seja equiparada a antissemitismo equivaleria a acusar milhares de cidadãos israelenses, judeus, que se opõem ao governo do primeiro-ministro israelense, também de serem antissemitas”. A má-fé da declaração é gritante: o conceito de antissemitismo da IHRA obviamente não se presta a condenar cidadãos israelenses que não gostam de seu governo, e sim pessoas ou governos que vilanizam Israel em qualquer circunstância, mesmo que Israel esteja exercendo seu direito de se defender, como faria qualquer país em situações semelhantes.
Isso tudo é muito coerente com a visão de esquerda, prevalecente no governo de Lula da Silva, segundo a qual Israel é um país criado pelo imperialismo ocidental para roubar terras e explorar os palestinos. Eis aí por que o chanceler Vieira se queixou dos supostos “limites” impostos pela IHRA à “ação política legítima em relação ao sionismo” – referência ao movimento de autodeterminação do povo judeu. Para a esquerda, como se sabe, sionismo é sinônimo de racismo e nazismo.
Que militantes de esquerda disfarcem seu antissemitismo dizendo-se “antissionistas”, é compreensível; que o governo brasileiro se preste a isso quase oficialmente, abandonando, sob argumentos burocráticos e ideológicos, uma organização dedicada a preservar a memória do Holocausto, é profundamente lamentável, pois manda aos antissemitas a mensagem de que sua hostilidade aos judeus brasileiros é não só aceitável, mas justa.
Um Nobel para a coragem
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
A concessão do Nobel da Paz de 2025 à líder da oposição venezuelana, María Corina Machado, é mais do que uma distinção pessoal: é a reafirmação do compromisso do mundo civilizado com os valores da democracia liberal, os direitos humanos e o Estado de Direito. Laureada foi a coragem de todos os venezuelanos que, liderados por María Corina, unem forças contra a tirania de Nicolás Maduro à custa de sua liberdade ou da própria vida. O prêmio, nesse sentido, deveria ser ocioso. Independentemente de chancelas honorárias, qualquer democrata de corpo e alma há de reconhecer o valor dos esforços dessa corajosa mulher em prol da paz em seu país e além.
Em tempos de inquietante tolerância com autocratas que corroem por dentro os pilares da democracia por meio da desvirtuação do poder político, o Comitê Norueguês do Nobel lembrou a todos que a luta pelo regime das liberdades ainda exige firmeza de caráter e sacrifício pessoal. Como lembrou Jørgen Frydnes, presidente do comitê, “apesar das sérias ameaças à sua vida”, María Corina permaneceu na Venezuela, uma decisão que “inspirou milhões” em seu país a continuar acreditando que viver sob as garras de Maduro não era destino e que, por meio da resistência cívica, um futuro mais auspicioso para todos os venezuelanos haverá de chegar.
A Venezuela vive há mais de duas décadas submetida aos horrores de um regime que, nascido das urnas, destruiu paulatinamente o próprio instrumento que o legitimou. Eleições no país vizinho são uma farsa. A ditadura de Maduro, herdeira do projeto de poder de Hugo Chávez, obliterou a separação de Poderes, calou o jornalismo profissional, cooptou instituições e reduziu a política à lealdade ao caudilho. Milhões de venezuelanos foram forçados ao exílio, inclusive no Brasil, por fome, medo ou desesperança. É nesse cenário de ruína moral e material que María Corina se ergueu como símbolo da oposição a Maduro, enfrentando cassações, ameaças e prisões de aliados sem jamais desistir da via pacífica nem abdicar do respeito à legalidade.
O Nobel dá ampla visibilidade a uma tragédia humanitária que parte da comunidade internacional preferiu deixar de lado em meio a tantas outras fontes de preocupação. É um alerta dirigido especialmente a alguns países da América Latina onde a solidariedade com as vítimas do regime tem sido substituída por constrangedora condescendência com Maduro. Governos autoproclamados democráticos – inclusive o brasileiro – tratam o ditador com deferência e, não raro, hostilizam seus opositores. A convicção democrática, nesses casos, foi superada pelo cálculo político.
É dever do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais do que de qualquer outro líder da região, pôr a mão na consciência e refletir sobre o significado do Nobel concedido a María Corina. Quando o “companheiro” Maduro cassou a candidatura presidencial de María Corina, de forma escandalosamente ilegal, Lula reagiu com ironia. Na ocasião, o petista disse que também fora “impedido de concorrer” em 2018, mas que, “em vez de ficar chorando”, indicou outro candidato – sugerindo que a venezuelana fizesse o mesmo. Para além do preconceito, Lula igualou situações incomparáveis e desdenhou da força de uma mulher que arrisca a vida pelos mesmos princípios que o petista, aparentemente só da boca para fora, diz defender.
O Nobel da Paz concedido a María Corina é um lembrete de que a democracia não é um “conceito relativo”, como dissera Lula, em 2023, ao tratar da crise na Venezuela. Seus valores não podem ser moldados conforme arranjos geopolíticos. A Venezuela vive sob uma brutal ditadura. E o fato de ainda haver quem hesite em chamar as coisas pelo nome mostra o quanto a política regional se divorciou de princípios morais e humanitários que deveriam se sobrepor às divergências políticas.
Laurear María Corina é uma resposta, ainda que indireta, a esses democratas seletivos que sacrificam os valores democráticos sob o altar das afinidades ideológicas. O reconhecimento de sua luta, como já dito, independe de prêmios. Mas o Nobel da Paz tem o mérito de registrar para a História que, enquanto há líderes que se omitem diante do arbítrio, por cálculo ou tara ideológica, há quem o enfrente com coragem e dignidade.
Com derrota de MP do IOF, ajuste de gastos se impõe
Por Editorial / O GLOBO
O plenário da Câmara dos Deputados: governo foi derrotado — Foto: Brenno Carvalho / Agência O Globo/08/10/2025
Em meio a uma leva de boas notícias para o governo — aprovação da isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil, abertura de diálogo sobre o tarifaço com Donald Trump e recuperação da popularidade —, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisará digerir a dura derrota que lhe foi imposta pela Câmara na última quarta-feira, quando deputados retiraram da pauta a Medida Provisória (MP) que criava alternativas à elevação do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Com o fim da validade da MP, o governo se viu desafiado a cobrir um rombo estimado em R$ 46 bilhões até o fim de 2026. Até agora, não tem proposta convincente para isso.
De nada adiantam as lamúrias e a busca por culpados externos. O maior responsável pelo abate da MP é o próprio governo. Errou desde o início, insistindo no aumento de impostos. A MP já era ruim, mas ficou pior quando deputados a desidrataram, reduzindo a tributação das bets e recuando na taxação de ativos financeiros como Letras de Crédito Imobiliário (LCIs) e do Agronegócio (LCAs).
Agora, o governo precisa se virar para obter novos recursos e promover cortes no Orçamento. O líder do governo no Congresso, Randolfe Rodrigues (PT-AP), aventou a possibilidade de contingenciar até R$ 10 bilhões em emendas parlamentares — uma ideia mais que oportuna. Lula deverá discutir o assunto com a equipe na próxima semana, depois de voltar de viagem a Roma, mas adiantou que uma proposta cogitada é taxar fintechs. “A gente vai propor que o sistema financeiro, sobretudo as fintechs, porque tem fintech hoje maior que banco, pague o imposto devido a este país”, disse.
O governo se vê sempre diante do mesmo problema: cobrir déficits no Orçamento gerados por uma gestão perdulária, que despreza o controle dos gastos públicos. Desde o início do mandato, essa nunca foi uma preocupação genuína. Quando a popularidade de Lula começou a despencar, cresceu o pacote de bondades do Palácio do Planalto, independentemente de haver recursos para sustentá-lo. A solução canônica tem sido o avanço sobre o bolso do contribuinte, apesar de os brasileiros já sofrerem com uma das maiores cargas tributárias do mundo.
Até aqui, Lula tem se recusado a fazer o que é necessário: promover ajustes estruturais nas despesas para equilibrar as contas. A política de aumento real do salário mínimo, que acarreta reajustes automáticos em todas as despesas a ele vinculadas (como aposentadorias, Benefício de Prestação Continuada, abono salarial ou seguro-desemprego), é um sorvedouro de recursos públicos. Assim como a vinculação obrigatória das despesas com saúde e educação à arrecadação (se a economia cresce, também cresce o gasto nessas duas áreas sem nenhuma avaliação de critério ou necessidade). Não surpreende que o Orçamento seja dominado por despesas obrigatórias, praticamente sem espaço para gastos livres.
É provável que nem o governo saiba qual será a saída para compensar o fracasso da MP do IOF. Petistas têm dito ser possível mexer em impostos sem aval do Congresso. O Supremo validou a competência do governo para elevar o IOF sem consultar o Parlamento. Mas esse caminho resultaria em mais crise e novos impasses. O Congresso já deixou claro que não está disposto a chancelar a sanha arrecadatória do Planalto. O governo não pode se furtar a implementar ajustes nas despesas.