MUITA ATENÇÃO: Ato de Moraes contra Musk dá ‘munição’ à tese de excessos do ministro do STF, dizem juristas
Por Hugo Henud / O ESTADÃO DE SP
Os recentes embates entre Elon Musk, dono do X (antigo Twitter), e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, reacenderam o debate sobre possíveis excessos cometidos pelo magistrado da Corte, especialmente após a inclusão do bilionário no inquérito das milícias digitais e a abertura de investigação por obstrução à Justiça contra ele.
Juristas ouvidos pelo Estadão admitem que o episódio tem o potencial de dar munição à tese de que o magistrado pode estar atuando para além de suas competências judiciais. Os especialistas rechaçam, no entanto, a ideia de que Moraes tem agido para perseguir Jair Bolsonaro, como alegam aliados do ex-presidente.
Na avaliação do doutor em direito penal pela USP e coordenador do curso de Direito da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Marcelo Crespo, a decisão de Moraes de abrir uma investigação contra Musk e incluí-lo em um inquérito, à revelia da Procuradoria-Geral da República (PGR), que é a instituição responsável por investigar e denunciar criminalmente, abre margem para críticas. “Moraes está antecipando movimentos que deveriam ser naturalmente da PGR. O debate não é o mérito mas o caminho como se deu”.
Da mesma forma, o professor de Direito Processual Penal da USP, Gustavo Badaró, ressalta que este tipo de conduta, além de excessiva, também suscita dúvidas sobre a imparcialidade de Moraes. “Quando um ministro determina a inclusão de alguém como investigado em um inquérito e depois esse mesmo ministro vai tomar decisões judiciais como relator do mesmo inquérito, me parece que há uma clara perda de imparcialidade.”
O professor de Direito Constitucional da UFF, Gustavo Sampaio, concorda que Moraes agiu de ofício e, portanto, não seguiu o caminho natural do sistema acusatório. O jurista, porém, apoia a inclusão, mesmo que, até o momento, o bilionário não tenha desrespeitado as decisões determinadas por Moraes no X, o que, a princípio, impede a configuração de crime de obstrução à Justiça.
“Inquérito não tem por objetivo condenar ninguém, e sim apurar. Se não se incluir o Musk, não se tem como apurar se ele teve participação em práticas que colaboraram no sentido da interrupção do processo democrático no Brasil”, avalia.
Desde 2020, Moraes tem determinado a suspensão de perfis em redes sociais de aliados bolsonaristas. A medida foi justificada pela necessidade de “interromper discursos criminosos de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática”. Crespo e Sampaio pontuam que a decisão é necessária, considerando que a liberdade de expressão não é um direito irrestrito e ilimitado. Os juristas, porém, ressaltam que, em excesso, a prática pode levar a julgamentos discricionários, já que tais decisões são feitas caso a caso pelo Judiciário, com base em critérios muitas vezes subjetivos.
“A partir de qual momento é razoável considerar que uma conta deva ser bloqueada porque ela está sendo utilizada basicamente para praticar crimes e causar desinformação?”, questiona Crespo.
Para Crespo e Sampaio, as recentes decisões do ministro contra Musk e a rede social X extrapolam as controvérsias no âmbito jurídico e se transformam em uma espécie de ‘munição política’ para que aliados bolsonaristas reforcem o discurso de que o ex-presidente está sendo alvo de perseguição nos múltiplos inquéritos em que é investigado, a maioria sob a relatoria de Moraes. “Sem dúvida nenhuma, é bastante munição, isso é pólvora para o discurso político”, diz Crespo.
A própria defesa de Bolsonaro tem levantado uma série de questões nas apurações em curso, como a concentração de poder em um único ministro e o impedimento de Moraes para julgar os inquéritos, pontos que podem, inclusive, levar à nulidade dos processos.
Concentração de poder nas mãos de Moraes
Um dos primeiros aspectos controversos é o possível excesso de poder de Moraes. Relator do inquérito das fake news aberto em 2019 pelo próprio STF, o ministro centralizou a relatoria de outras investigações no Supremo, incluindo aquelas relacionadas aos atos antidemocráticos de 2021, às milícias digitais e aos ataques do 8 de Janeiro.
Todos esses casos, nos quais o ex-presidente é investigado, permanecem sob o comando de Moraes, com base na regra de que quando há conexão entre os fatos investigados, a competência para julgar os processos deve ser mantida com o mesmo magistrado. Ou seja, a partir do inquérito das fake news, Moraes assumiu, por prevenção, a relatoria de outras investigações devido ao elo probatório nas diferentes ações.
Na avaliação de Badaró, nem todas as investigações parecem ter relação entre si, sendo necessário, nessa situação, separá-las e sorteá-las entre os ministros – como é a praxe da Corte. Como exemplo, ele menciona não ver ligação entre a falsificação do certificado de vacina e os atos antidemocráticos. O jurista pontua ainda que um dos efeitos da conexão é a reunião dos processos em único inquérito, o que não aconteceu no caso de Moraes. “Se os inquéritos estão tramitando separados é porque não há conexão, então deveria ter distribuição livre”.
Conselheiro da OAB federal e doutor em Direito Penal pela USP, Alberto Toron vai além ao avaliar que o Supremo fez uma interpretação extensiva tanto do instituto da conexão quanto da regra sobre a prerrogativa de foro privilegiado. Toron indica que, por esse motivo, o STF não teria competência para investigar o ex-presidente em certos casos, uma vez que Bolsonaro perdeu a prerrogativa de foro ao deixar a Presidência, devendo, portanto, ser julgado na primeira instância, conforme estabelece a lei.
Para o criminalista, a amplitude da interpretação da competência guarda semelhanças com o que ocorreu na Operação Lava Jato, quando o então juiz Sérgio Moro foi criticado por avocar para si a competência de várias investigações com base na regra da conexão.
“Isso fez com que a competência de um único ministro do STF virasse, como se dizia e como se criticava em relação ao juiz Moro, uma espécie de ‘juiz nacional’, a quem compete conhecer a respeito de todos os fatos que minimamente possa atinar com Bolsonaro e bolsonaristas”, pondera.
Toron e Badaró também ressaltam que pode estar havendo uma interpretação ampla de uma das regras de competência, que permite ao STF julgar casos quando os crimes ocorrem em suas dependências. Como o inquérito das fake news, aberto para apurar ataques aos ministros da Corte e no qual o Bolsonaro é um dos investigados.
Ex-ministro da Justiça no governo de Dilma Rousseff, o advogado Eugênio Aragão e o presidente do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), Renato Vieira, concordam que o Supremo é a instância adequada para julgar os casos relacionados ao ex-presidente. Ambos destacam que, embora as investigações sejam complexas, identificam uma interligação entre todos os procedimentos até o momento, o que justifica os inquéritos sob o gabinete de Moraes.
O advogado e professor da USP e ESPM, Rafael Mafei, também avalia que, a princípio, não há irregularidade de competência. Mafei, porém, pondera sobre a excessiva amplitude de certos inquéritos, como o das milícias digitais, que investiga desde as tentativas de golpe de Estado até o caso das joias sauditas, revelado pelo Estadão.
Os casos para impedimento de Moraes
Os vários inquéritos sob a relatoria de Moraes levaram a defesa do ex-presidente a solicitar por mais de uma vez o afastamento do ministro da condução das investigações. Os advogados argumentaram que Moraes estaria simultaneamente atuando como vítima e julgador. No entanto, a tese foi rejeitada em fevereiro pelo presidente da Corte, Luís Roberto Barroso.
Sampaio, e os advogados criminalistas Davi Tangerino e Pierpaolo Bottini concordam com a decisão de Barroso. Eles argumentam que o ministro não precisa se considerar impedido, já que os ataques têm como alvo o Estado democrático de Direito e a própria sociedade brasileira. Na mesma linha, Aragão, Mafei e Vieira avaliam que os investigados não podem tentar criar impedimentos ao ofender magistrados, como ocorreu quando o ex-presidente e seus aliados atacaram não só Moraes, mas outros ministros da Corte.
Badaró ressalta que, teoricamente, não há motivo para questionar a imparcialidade. No entanto, ele pondera que as revelações feitas pelo próprio Moraes no início deste ano, quando afirmou que a investigação sobre os atos golpistas indicava planos para prendê-lo e enforcá-lo, poderiam ser motivos para que ele se declarasse impedido. O professor, porém, destaca que, neste caso concreto, a decisão de impedimento caberia ao próprio ministro e não à defesa do ex-presidente.
Acesso às provas e delação de Cid
Outro ponto que tem sido alvo de debates jurídicos é a possível dificuldade e demora no acesso às provas, tanto para a defesa de Bolsonaro quanto para os demais envolvidos nos inquéritos. Badaró avalia que a defesa do ex-presidente deveria ter acesso sem empecilhos tanto às provas envolvendo Bolsonaro quanto à delação de Mauro Cid, sob pena de violação do princípio do contraditório e da ampla defesa.
Vieira, por outro lado, diverge quanto ao acesso à colaboração premiada do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. O advogado avalia que o sigilo é a regra geral e, por isso, em tese, deve-se aguardar o recebimento da denúncia devido ao risco de comprometer as investigações durante o inquérito. Ele ressalta, contudo, que há exceções quando devidamente fundamentadas, sendo necessário, portanto, conhecer os detalhes das investigações para compreender os motivos pelos quais Moraes não concedeu permissão à defesa de Bolsonaro.
Em março, Cid voltou a ser preso preventivamente após descumprir medidas cautelares e por obstrução à Justiça. O mandado de prisão, expedido por Moraes, ocorreu depois da divulgação de áudios pela revista Veja, nos quais Cid critica a forma como a PF e Moraes conduziram seus depoimentos. Em oitiva, também na sexta, o ex-ajudante de ordens de Bolsonaro confirmou os termos da delação premiada fechada com a PF. A validade do acordo, porém, segue sob análise.
O debate sobre os possíveis excessos de Moraes em relação ao direito de defesa ganhou destaque, especialmente após a decisão na Operação Tempus Veritatis, na qual o ministro limitou o contato dos envolvidos através de seus advogados. Apesar dos esclarecimentos de Moraes sobre o dispositivo, os juristas consideraram a medida excessiva.
Em relação ao tema, Moraes já defendeu que o acesso completo às provas documentadas foi concedido, exceto as diligências em andamento e elementos da colaboração de Mauro Cid. Segundo o ministro, há um entendimento consolidado na Corte de que a negativa de acesso a termos de colaboração premiada referente a investigações em curso não constitui cerceamento de defesa.
Risco de nulidades nos processos
Tanto Toron quanto Vieira consideram que esses aspectos formais podem ser contestados pela defesa do ex-presidente com o avançar dos processos. No entanto, os advogados ressaltam que será difícil anular atos processuais relevantes, uma vez que os inquéritos estão sendo conduzidos no Supremo, a última instância recursal do sistema jurídico brasileiro.
Embora os processos estejam no Supremo, Badaró acredita que podem surgir pedidos de nulidades bem-sucedidos, especialmente devido à possível questão de vício de competência, o que poderia resultar na anulação de todos os atos decisórios proferidos durante a investigação. Ele lembra que na Lava Jato, o STF julgou casos da operação e, posteriormente, revisou seu entendimento, alterando suas próprias decisões.
Por outro lado, Mafei e Sampaio concordam que, embora os pedidos feitos por qualquer defesa sejam legítimos, o respaldo da maioria das iniciativas de Moraes pelo plenário do Supremo diminui as chances de sucesso desses pleitos.
Quanto à possibilidade de uma eventual rescisão da delação de Cid suscitar pedidos de nulidades por parte de Bolsonaro, Sampaio explica que, nesse caso, as provas levantadas ao longo da investigação continuam válidas, assim como as decisões tomadas no âmbito dos inquéritos com base nas informações apresentadas no acordo por Cid.
Índice de miséria mostra que Norte e Nordeste precisam mudar
Sergio Vale / CNN 05.05.22
A forte inflação tem levado os Bancos Centrais de boa parte do mundo a subirem os juros com mais intensidade. Sendo de oferta ou de demanda, o fato é que a inflação está em grau elevado o suficiente para os bancos centrais serem mais agressivos do que sinalizavam antes. E estão corretos.
Não há sinais no curto prazo de normalização total nos mercados de commodities com as incertezas sobre a guerra da Ucrânia e o mercado de trabalho americano segue aquecido, colocando pressão no curto prazo nos salários.
Inflação elevada de um lado com juros mais altos levando a desemprego também mais elevado lá na frente. É a sina a se pagar para evitar o pior dos mundos que é a inflação que corrói a renda especialmente de quem é mais pobre e não consegue se proteger da alta de preços.
Mas esses números são médias. A percepção regional costuma ser diferente. A inflação em Curitiba pode ser diferente do Recife, e a taxa de desemprego também pode ser diferente entre essas cidades. E os fatos têm mostrado que essa diferença não apenas ocorre, mas pode ser grande.
Com efeito, o índice de miséria, calculado para algumas cidades para as quais existem informações, mostra justamente uma diferença importante. Esse dado mostra a soma da taxa de desemprego e da inflação em 12 meses e sinaliza a percepção de perda de poder de compra da população.
Os resultados mostram que o Nordeste tem apresentado os piores números, muito acima da média brasileira e as capitais cujos estados têm presença de commodities vem apresentando números bem melhores (gráfico abaixo).
Taxa de miséria nas capitais – taxa de desemprego + inflação
Não há grande diferença entre as taxas de inflação, mas sim entre as taxas de desemprego, as quais apresentam números muito elevados nas capitais nordestinas.
Justamente o efeito das commodities tem sido importante para manter as taxas de desemprego baixas nessas cidades enquanto o Nordeste teve uma forte dependência de programas sociais e da Previdência nos últimos anos, que não conseguiram gerar sustentação de crescimento.
No momento em que se precisou fazer ajuste no salário mínimo e na Previdência, essas cidades começaram a sofrer as dificuldades para conseguir gerar crescimento menos dependente do estado.
Claro que a pandemia, por ter afetado com mais intensidade os serviços, acabam afetando essas regiões pouco industrializadas e com forte peso do turismo. De qualquer maneira, é uma situação que tem implicações não apenas econômicas, mas políticas.
Os estados mais pobres tanto do Norte quanto do Nordeste terão que ter políticas mais ativas e menos dependentes do Estado que consigam gerar desenvolvimento.
O caminho do Norte está claro: passa pela Amazônia e seu desenvolvimento econômico sendo explorado com a manutenção da floresta e não sua destruição.
O Nordeste tem dificuldades históricas, mas também dessa região vem os dois grandes exemplos transformadores de educação no Brasil, com o ensino fundamental em Sobral, no Ceará, e o ensino médio em Pernambuco.
A própria região tem um caminho claro de quebra de paradigmas na educação, mas que depende de vontade política para acontecer. Esses polos educacionais em conjunção com boas universidades públicas poderiam fazer do Nordeste no futuro um polo de tecnologia, até pela proximidade dos mercados americano e europeu haveria escala para que isso acontecesse.
Com as mudanças geopolíticas transformando a globalização em algo mais regional do que mundial, seria uma grande oportunidade do Nordeste nesse sentido.
Há grande evolução de energia sustentável na região (eólica e solar), o que atrai mercados compradores preocupados com o ESG, além de forte base universitária e eventualmente de ensino médio caso o exemplo pernambucano se espalhe, com mão de obras relativamente barata.
Aqui o BNDES poderia entrar em conjunto com alguma coordenação regional para que esse modelo funcionasse. De certa forma, o Nordeste conseguiu fazer isso ao criar o Fórum de Governadores para lidar com a pandemia.
A região precisa começar a pensar de forma mais integrada e unir forças, até pela confluência de governos de centro-esquerda que facilitariam esse processo.
Melhorar o desenvolvimento econômico da região vai demandar pensar fora da caixinha e com esforço integrado de todos os estados, com troca de experiências e informação.
Há uma chance a se aproveitar com a institucionalidade iniciada com o Fórum dos Governadores e bases sólidas na educação. Esperar o Estado voltar a ser a fonte de crescimento é perder uma ótima oportunidade de crescimento tecnológico de longo prazo.
Opulência e miséria amazônicas
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Pela urgência climática ou por oportunismo, por um eventual despertar ambiental ou simplesmente modismo, é provável que nunca na história do Brasil se tenha ouvido tanto falar da Amazônia – mas é espantoso o quanto a expansão do debate sobre a maior floresta tropical do planeta parece inversamente proporcional ao conhecimento sobre sua realidade. Esse paradoxo é reafirmado diante da série de reportagens Êxodo na Amazônia, publicada pelo Estadão em 7 de abril e, antes, em três capítulos na versão online. Os repórteres Vinícius Valfré e Wilton Junior percorreram 3 mil quilômetros e descreveram como a violência e a escassez empurram brasileiros para longe da floresta; como o êxodo na floresta agrava a favelização em Manaus e abre brechas para o tráfico e a milícia; e como indígenas dividem rotas fluviais com invasores e traficantes de drogas e armas em viagens de busca por assistência. Tem-se ali uma porção do País incrivelmente conhecida e ao mesmo tempo terrivelmente ignorada.
Essa dissonância demonstra o que deveria ser uma cláusula pétrea nacional, aquela segundo a qual não há riqueza natural ou desenvolvimento de uma região sem existência de progresso real para a sua população. Tampouco há pleno mérito na ampliação do debate sobre a Floresta Amazônica sem que se cumpram requisitos mínimos de dignidade para quem vive nela. Símbolo dos superlativos, ela é também a representação do quanto nos resignamos a conviver com profundas disparidades. A opulência amazônica, afinal, é também a miséria amazônica. O grande potencial da biodiversidade brasileira é também o espaço de pobreza, do perigo e da escassez de toda sorte. No balanço entre perdas e ganhos, como se viu nas reportagens, o saldo é desolador.
Tais problemas não são obra do acaso. Vêm da Marcha para o Oeste, política de ocupação implementada por Getulio Vargas na década de 1940; da fórmula criada durante o governo Café Filho (1955) para atrair a imigração europeia à “terra sem gente” que o Brasil representava – a Região Norte em especial; do projeto de integração nacional do regime militar, nos anos 1960 e 1970, para a ocupação dos vazios demográficos da Amazônia; até os problemas ambientais intensificados nas duas décadas seguintes. Esses modelos ignoraram que o desenvolvimento exigia tanto a proteção e a sustentabilidade da floresta como a produção de riquezas, renda, emprego e alimentos para as populações locais.
A situação agravou-se com Jair Bolsonaro e sua política de terra arrasada na área ambiental, que enxergava as árvores como seus inimigos. Já Lula da Silva, com sua persona camaleônica, trafega entre a tentativa de se exibir como protetor da floresta e o histórico de quem nunca se entusiasmou de fato com o meio ambiente. Em 2010, convém lembrar, Lula entretinha plateias contando a história da perereca impertinente que atrasava obras. “Não podemos parar tudo por causa de uma perereca”, dizia ele, provocando gargalhadas enquanto criticava órgãos de proteção ambiental.
“Nacionalizar a Amazônia e amazonizar o mundo” foi o lema concebido pelo Grupo de Trabalho Amazônico, rede de organizações criada no marco da Rio-92, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Nacionalizar tinha e tem um bom sentido: fazer o restante do Brasil despertar para o bioma, compreender suas realidades, carências e potencialidades, deixar de ver a floresta a partir de imagens extremas. São duas visões radicalmente diferentes em nosso imaginário: uma enxerga a floresta como inferno; a outra, como paraíso.
Conhecer de fato a Amazônia pode ajudar não só a escapar dessa dicotomia, como deflagrar um modelo de desenvolvimento que concilie a valorização da floresta em pé com possibilidades econômicas reais para a região. Só assim o País deixará de vê-la como um ônus de conflitos e desmates que afetam o clima do planeta para concentrar-se no bônus de uma riqueza natural relevante para o planeta, mas capaz de garantir condições básicas para os povos da floresta e das cidades amazônicas.
PT ajuda a versão do adversário ao defender que tem a mesma proposta do PC Chinês
Por Míriam Leitão / O GLOBO
A China é uma ditadura. O PT sempre governou o Brasil democraticamente. Tudo o que a extrema direita golpista quer é vincular o PT ao autoritarismo, apesar de ter sido essa mesma direita que tentou golpear as instituições democráticas. Nos últimos dias, na esteira do histrionismo de Elon Musk, parlamentares brasileiros ligados a Jair Bolsonaro têm gritado no exterior a sandice de que o Brasil é uma ditadura. Por que mesmo, num contexto assim, a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, vai a Pequim declarar que seu partido e o PC Chinês têm afinidades, e afirmar que foi “inspirador" o encontro dos dois partidos?
Visitar a China, ter bom relacionamento com as autoridades chinesas, ter relações com o partido governante daquela potência, fazer acordos, isso é natural. O que não faz sentido é sugerir que há uma irmandade com um partido que governa a China com mão de ferro há 75 anos, que destrói qualquer oposição que apareça, que controla tudo, a imprensa, as redes sociais, as empresas, as artes. Um governo que, na última vez em que houve uma insurgência popular, em 1989, reagiu com um massacre em praça pública, e reprime ou reverte qualquer tentativa de abertura. Como acontece agora em que Xi JinPing colocou mais um ferrolho na porta em favor da sua permanência no poder.
A deputada Gleisi Hoffmann disse, segundo relato do jornalista Marcelo Ninio: “É o predomínio do capitalismo que gera um cenário internacional de instabilidade, crises, guerras e revoltas. Nossos partidos, o PT e o PC Chinês defendem que o socialismo é essa alternativa. Um de nossos maiores desafios é exatamente de tornar o socialismo mais influente e mais poderoso em nossos países e também em escala mundial”.
A propósito, a China não pode ser classificada como país socialista. A economia é dominada pelo capitalismo de Estado e uma elite cada vez mais bilionária de empresários que aceitam a simbiose de suas empresas com o regime. Visitar os colossos chineses de diversas áreas, como a Huawei, é interessante para qualquer pessoa. Estranho é achar que isso é socialismo.
O comunismo, como se sabe, não existe. Apesar disso, tem sido o espantalho eterno de quem tem intenções ditatoriais no Brasil. Foi essa ameaça que brandiram os golpistas de 1964, e repetem agora Bolsonaro e seus seguidores. O delírio do risco comunista é apresentado por pastores de má-fé nas suas igrejas. Falas como a da presidente do PT serão usadas como prova de que disseram a verdade.
Os Estados Unidos têm um enorme telhado de vidro e criticá-los também é natural. Fazer críticas em tom mais alto do que os chineses é ser mais realista do que o rei. Concluir que os Estados Unidos são o epicentro de todas as crises internacionais é simplificar o complexo. A boa política externa entende as complexidades desse mundo há muito tempo multipolar. A Rússia invadiu a Ucrânia levando uma guerra para dentro da Europa. Isso é conflito gerado pelo fato de os Estados Unidos não aceitarem a própria decadência? O ditador Vladimir Putin é também um resultado da crise do capitalismo? Nenhuma culpa recai sobre o autocrata do Kremlin?
O governo de Joe Biden parabenizou o presidente Lula meia hora depois de o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) ter declarado a vitória do atual presidente no dia 30 de outubro. Jair Bolsonaro levou 38 dias para reconhecer a vitória de Biden. Bolsonaro conspirou para tentar impedir a posse do eleito, o que culminou na tentativa de golpe de 8 de janeiro.
A direita trumpista tinha feito ataque semelhante ao Capitólio, dois anos antes, em 6 de janeiro de 2021, para tentar impedir a posse de Biden. Como tudo isso cabe dentro da visão de mundo de que os Estados Unidos têm o monopólio da geração de crises no planeta?
Há uma doença infantil da qual o Partido dos Trabalhadores nunca se curou. Somando-se os tempos, ele governou o Brasil por quase 15 anos. Já poderia ter desenvolvido um pensamento internacional mais sofisticado, sem alinhamento com uma potência ditatorial, e que evitasse o antiamericanismo estudantil. Aqui no Brasil partido é partido, governo é governo —ao contrário da China, aliás — mas o que a presidente do PT diz será usado pelos que querem rotular o atual governo de ditatorial, ou dizer que o espectro do comunismo ronda o Brasil.
Contradições em choque
Por Merval Pereira / O GLOBO
A direita brasileira, com apoio internacional, está usando as contradições do governo Lula e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar fragilizar o sistema democrático brasileiro, desacreditando-o perante a opinião pública.
Esse debate do bilionário Elon Musk contra ministros do Supremo é a continuidade da guerra do ex-presidente Bolsonaro contra as instituições nacionais, mas só tem consequências porque o governo brasileiro reagiu mal nos primeiros momentos, em vez de deixá-lo falar sozinho, para os seus radicais.
A primeira conclusão a tirar é que Musk não é de direita nem de esquerda, ele assume posições quando cheira investimentos rentáveis, seja na China, uma ditadura de esquerda, seja em países governados pela direita, como a Argentina atual e o Brasil de Bolsonaro.
Transformar Musk em um radical de extrema-direita é distorcer a verdade, e combatê-lo, consequentemente, com as armas erradas. Incluir Musk num de seus muitos inquéritos foi uma reação quase infantil do ministro Alexandre de Moraes, que exorbitou da competência por conexões infinitas entre questões submetidas, inicialmente, ao inquérito das fake news e, subsequentemente, aos inquéritos das milícias digitais e dos atos antidemocráticos, que concentra enorme poder no STF.
A abrangência do suposto poder de Moraes é tão grande que já há piadas dizendo que Musk só escapará dele se for a bordo do próximo Space X para Marte. O ministro Alexandre de Moraes, por decisão de seus pares, virou prevento de toda ação que se assemelhe a ataques à democracia, confundindo ataques pessoais aos institucionais.
A isso se soma uma ampliação do foro privilegiado, para julgar todos os vândalos de 8 de janeiro de 2023 e, agora, até os mandantes do caso Marielle. Durante um período da Operação Lava-Jato, também a Vara de Curitiba comandada pelo então juiz Sérgio Moro tinha esse poder exacerbado, até que os ministros do Supremo, que durante anos avalizaram suas decisões, passaram a achar, por circunstâncias além dos autos, que Curitiba não era a jurisdição adequada para vários casos, anulando todas as provas e julgamentos. Mas isso pode acontecer no futuro.
Moro levantou o sigilo de uma conversa entre então presidente Dilma e Lula, e, com base nessa ação considerada depois ilegítima, permitiu que um ministro do Supremo, Gilmar Mendes, impedisse a presidente de nomear Lula para a chefia do Gabinete Civil, o que lhe daria foro privilegiado. O ministro Alexandre de Moraes levantou o sigilo dos depoimentos dos Generais sobre a tentativa de golpe, para enfraquecer a defesa de Bolsonaro. Todos esses movimentos servem para mobilizar o eleitorado de direita, sem falar nos extremistas que acompanham sempre Bolsonaro, apesar dos fatos contra ele.
A diferença, neste momento, a favor do Supremo e do ministro Alexandre de Moraes, é que eles estavam realmente defendendo a democracia, enquanto Bolsonaro, Musk e os extremistas tentam desconstruir as instituições brasileiras para favorecer uma rebelião contra o governo, que consideram “comunista”. Mas, quando a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, volta da China com uma entourage dizendo que por lá vigora uma “democracia efetiva”, é sopa no mel para os bolsonaristas. Quando Lula diz que na Venezuela há “democracia até demais”, e reage tão suavemente à armação eleitoral que o ditador Maduro arma para permanecer no poder, confirma a visão extremista que luta para tirá-lo do poder.
Lula só se elegeu em 2022 porque prometeu um governo de união nacional, e hoje está isolado dentro do Congresso, pois montou um governo de esquerda com uma aparente coalizão democrática que não tem sustentação real.
Limites à polícia
Em duas decisões proferidas na última quinta (11), o Supremo Tribunal Federal reafirmou o óbvio: no Estado democrático de Direito, há limites para a atuação policial.
A corte definiu que o poder público deve ser responsabilizado civilmente por morte ou ferimento de cidadãos em operações de segurança e quais critérios não justificam abordagens feitas por agentes.
A letalidade policial no Brasil é notória e vergonhosa. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 6.430 pessoas foram mortas por forças de segurança em 2022. São 18 mortes por dia.
Para se ter ideia da dimensão, no mesmo ano foram 1.176 óbitos nos EUA, sendo que lá há 130 milhões de habitantes a mais do que aqui.
Há também as vítimas das balas perdidas. Entre 2007 e agosto de 2023, foram 101 crianças mortas por disparos oriundos de operações policiais ou disputas entre facções criminosas no estado do Rio, segundo dados da ONG Rio da Paz.
Em relação a essas mortes, o STF determinou que perícias inconclusivas sobre a origem do disparo fatal —principal entrave para o ressarcimento da população afetada— não são mais um óbice para atestar a responsabilidade civil do Estado de indenizar as vítimas.
No outro julgamento, o Supremo proibiu abordagem policial motivada por critérios não objetivos, como raça, sexo ou aparência física.
O Código de Processo Penal exige a chamada fundada suspeita para que cidadãos sejam revistados. No entanto, como a lei não estipula com exatidão esse preceito, os policiais acabam decidindo o que seria um comportamento duvidoso, o que pode dar margem a preconceitos, notadamente o racial.
As decisões representam avanços. Contudo deve-se cuidar para que não sirvam apenas para a responsabilização do Estado, no caso de operações letais, ou anulação de processos, no caso da abordagem.
Tais medidas precisam ser internalizadas por agentes e autoridades para diminuir o número de vítimas da arbitrariedade e da brutalidade das forças de segurança.