Transição demográfica impõe desafio ao recrutamento de novos soldados
Por Editorial / O GLOBO
A queda no crescimento populacional não preocupa apenas demógrafos e economistas. Já afeta há algum tempo as Forças Armadas das grandes potências, que não têm conseguido renovar suas tropas com jovens recrutas. Depois da Guerra do Golfo, em 1991, houve uma suposição generalizada de que a tecnologia permitiria substituir grandes contingentes de soldados por poucos militares altamente treinados, capazes de operar armas de alta precisão. A guerra na Ucrânia, porém, tem forçado a reavaliação dessa premissa, diz Stephen Biddle, historiador militar e especialista em política de defesa do Council of Foreign Relations, de Nova York. A alta mortalidade num conflito que já dura três anos põe em xeque esse modelo de guerra — não por acaso, a Rússia buscou tropas na aliada Coreia do Norte. A tecnologia de precisão já se mostrou insuficiente em conflitos mais curtos.
Em contexto de crescente tensão geopolítica, com aumento estimado em 65% no número de choques armados nos últimos três anos, de acordo com o Índice de Intensidade de Conflito, da consultoria britânica Verisk Maplecroft, os orçamentos militares cresceram, mas esbarram na falta de soldados para lutar. No ano passado, a Alemanha gastou US$ 63,7 bilhões com Defesa, um recorde, segundo o Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), de Londres. Para este ano, espera-se que destine US$ 76,8 bilhões, atingindo pela primeira vez os 2% do PIB em despesas com as Forças Armadas estabelecidos como piso pela Otan. A Alemanha também tem a meta de contar com 203 mil militares até 2031. Mas não será fácil, se considerarmos que, no ano passado, o contingente alemão perdeu 1.500 militares. A tropa tem hoje 181,5 mil homens e mulheres.
Nas Forças Armadas do Reino Unido, faltaram 5.800 soldados no ano passado. O jornal especializado UK Defence revelou que o país não atinge as metas de recrutamento desde 2010. Os Estados Unidos, maior potência militar do mundo, também enfrentam dificuldades devido à demografia. Há pelo menos dois anos, as Forças Armadas americanas têm problemas no recrutamento. Em 2022, a meta era recrutar 60 mil. Faltaram 15 mil. A força do Exército regular americano, de 452 mil homens e mulheres, é “a menor desde antes da Segunda Guerra", segundo artigo publicado em janeiro pelo tenente-coronel Frank Dolberry e por Charles McEnany, analista de segurança nacional do Exército americano.
A China, que tem a segunda maior população mundial, passa pela mesma dificuldade. Em raro gesto de transparência, o Exército chinês admitiu no ano passado que faltavam militares capazes de manejar armamentos de última geração. Num relatório divulgado pelo South China Morning Post, o porta-voz do Exército mencionou a falta de pessoal preparado para servir nos navios comissionados para renovar a frota da Marinha. Mesmo que se considere que a carreira militar não seduz jovens como no passado, a demografia se mostra um inimigo difícil de bater.
É imoral e custoso restaurar quinquênio pago aos juízes
Por Editorial / O GLOBO
No momento em que o país precisa conter os gastos públicos para equilibrar suas finanças, ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Superior do Trabalho (TST) ressuscitaram, a pedido da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), o pagamento de reajustes automáticos de 5% aos magistrados a cada cinco anos, conhecido como quinquênio. Extinta em 2006, essa benesse não obedece a nenhum parâmetro de mérito e deixa de considerar a situação fiscal crítica do país. O salário dos magistrados — uma das categorias mais privilegiadas do funcionalismo público — sobe por inércia com o passar do tempo, mesmo que a Justiça seja conhecida por lentidão e burocracia.
A decisão deixa dúvida se será obedecido o teto salarial do setor público, estabelecido pela Constituição em R$ 44.088,52, remuneração de ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). A bolada que juízes receberão com os atrasados e o próprio quinquênio, oficialmente chamado de Adicional por Tempo de Serviço (ATS), é considerada “indenizatória” e não se submete ao limite constitucional. Por enquanto, apenas o TST determinou o pagamento dos atrasados. É difícil, porém, que o STJ resista a pressões e não siga a Justiça do Trabalho. E é evidente que o sucesso incentivará juízes e desembargadores dos demais tribunais a tentar obter o mesmo privilégio.
No início do ano, houve uma tentativa de ressuscitar o quinquênio por meio de Proposta de Emenda à Constituição (PEC), encaminhada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). A reação forçou um recuo, enquanto o Congresso se concentrava em aprovar medidas para socorrer o Rio Grande do Sul. Agora, o caminho escolhido foi administrativo, certamente para evitar a exposição que o assunto teria se voltasse ao Congresso. A PEC, que também concedia a regalia ao Ministério Público, chegou a ser aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado. O governo calculou que representaria R$ 40 bilhões por ano a mais no gasto público. De acordo com nota técnica da Consultoria de Orçamento, Fiscalização e Controle do Senado, a despesa adicional chegaria a R$ 81,6 bilhões até 2026.
Os tribunais brasileiros, de acordo com o Tesouro Nacional, gastam 1,61% do PIB, ante 0,3% nos países desenvolvidos e 0,5% nas demais economias emergentes. Os gastos do Judiciário são quatro vezes a média mundial, que gira em torno de 0,4%. A experiência mostra que os gastos efetivos ultrapassam as estimativas, porque vantagens obtidas por corporações do serviço público costumam passar por um efeito cascata e beneficiar outras categorias. Cria-se um festival de bondades à custa do contribuinte. Em maio, pesquisa da Quaest revelou que 76% da população rejeitava a PEC.
Há no STF, sob relatoria do ministro Cristiano Zanin, uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, impetrada pelo Partido Novo, contra a regalia. É imperativo rejeitar a volta do quinquênio, por ser imoral, custoso e anacrônico. Os juízes já estão na elite do funcionalismo, têm direito a dois meses de férias (pagos em dinheiro se desejarem) e a todo tipo de auxílio. Em contraste, as finanças públicas padecem de desequilíbrio crônico. São urgentes medidas estruturais de ajuste fiscal. Manter os privilégios de categorias no Judiciário só faz aumentar o custo do ajuste necessário, invariavelmente pago pelo resto da população.
Gastos com seca e enchentes no RS ficam fora da meta fiscal, mas elevam dívida pública
Por Geralda Doca— Brasília / O GLOBO
Mesmo com a previsão oficial de fechar este ano com as contas públicas dentro da meta fiscal, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva deve entregar um rombo maior, estimado em R$ 64,4 bilhões pelo próprio Executivo. Por decisões judiciais ou determinação legal, o governo tem tirado do cálculo da meta algumas despesas. No entanto, mesmo que isso seja autorizado por lei, esses gastos não escapam da dívida pública. O resultado é o aumento da previsão do endividamento do governo brasileiro mesmo com o pacote de cortes anunciado na semana passada, o que preocupa especialistas.
Neste ano e no próximo, a meta do governo é um resultado zero. Ou seja, receitas iguais às despesas. O arcabouço fiscal, porém, permite que se chegue a um resultado negativo de até 0,25% do Produto Interno Bruto, o equivalente hoje a R$ 28,7 bilhões. Mas nos dois anos a conta no vermelho vai ser maior que essa.
Em 2024, isso vai acontecer principalmente devido aos chamados créditos extraordinários, editados para fazer frente a situações imprevisíveis e urgentes. As regras fiscais permitem que esse tipo de despesa seja computado fora da meta. Por isso, gastos para combater incêndios — decorrentes da seca — e para lidar com as chuvas no Rio Grande do Sul não serão contabilizados, embora engordem o déficit “real” das contas públicas.
Para o ano que vem, o resultado previsto pelo próprio governo é de um rombo de R$ 40,2 bilhões. Dessa vez, o déficit será maior porque o governo vai pagar R$ 44,1 bilhões em precatórios fora da meta com autorização do Supremo Tribunal Federal (STF). Precatórios são gastos decorrentes de decisões judiciais.
— Os abatimentos previstos na legislação têm ajudado o governo na tarefa de cumprir as metas fiscais, mas podem mascarar a situação das contas públicas. Independentemente desses abatimentos, a dívida pública pode subir mais — disse Alexandre de Andrade, economista da Instituição Fiscal Independente (IFI), ligada ao Senado Federal.
Estimativas da IFI apontam a que a dívida pública deve atingir 84,1% do Produto Interno Bruto (PIB) no fim de 2026. Em dezembro de 2022, o percentual do endividamento estava em 71,7%. Pulou para 78,6% do PIB em outubro deste ano. Com a piora do resultado das contas e o aumento da taxa de juros, o próprio governo já vê a dívida bruta em 81,6% a partir de 2026.
Segundo Andrade, é pouco provável que o governo consiga estabilizar a dívida em relação ao PIB em razão da dificuldade de realização de superávits primários nos próximos anos. Em 2024, destacou, houve o ingresso de quantias expressivas de arrecadação de Imposto de Renda sobre o estoque dos fundos exclusivos e das offshores (R$ 22,8 bilhões), receita que não se repetirá nos próximos exercícios.
Sinal de risco
O patamar de 80% do PIB de endividamento bruto é considerado um marco por especialistas porque é visto como alto para um país com as características do Brasil. Nas estatísticas do Banco Central, a única vez em que a dívida bruta ficou acima de 80% do PIB foi durante a pandemia de Covid-19.
Procurado o Ministério da Fazenda não quis comentar. O Ministério do Planejamento argumentou que do valor descontado da meta neste ano quase a sua totalidade refere-se a calamidades públicas (Rio Grande do Sul e seca) e 4% à decisão do Tribunal de Contas da União acerca do Judiciário. A pasta alega que a dispensa do alcance da meta fiscal era prevista.
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“A dispensa do atingimento de resultados fiscais já era prevista na própria Lei de Responsabilidade Fiscal, e foi aprofundada pelo Congresso Nacional em 2020”, afirma o ministério.
A situação é preocupante, mesmo com o pacote anunciado pelo governo na semana passada. Um dos objetivos do pacote, como repetiu o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, é fazer com que o governo consiga cumprir o arcabouço fiscal. — O pacote não ajuda a reduzir a dívida. Zero chance porque não endereça qualquer vetor estrutural de aumento da despesa — disse o economista-chefe da ARX investimentos, Gabriel Leal.
Ele lembrou que há um avanço continuado de despesas que estão sendo deduzidas tanto do limite de gastos, quanto da meta de resultado primário, sobretudo no segundo mandato do presidente Lula e, posteriormente, de Dilma Rousseff:
— Nesse período, o excesso de deduções produziu uma piora e desancoragem das expectativas dos agentes econômicos sobre o quadro fiscal, contaminando a curva de juros e a taxa de câmbio. A origem do problema é fiscal e apenas uma resposta contundente é capaz de reverter a piora substancial que temos visto — disse Leal.
O pacote anunciado na semana passada inclui mudanças nos parâmetros de reajuste do salário mínimo, no abono salarial, pente-fino no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e no Bolsa Família, idade mínima para aposentadoria dos militares, entre outras ações pontuais.
O aumento da isenção do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) para quem ganha até R$ 5.000 — uma das promessas de Lula quando era candidato à Presidência — foi anunciado de surpresa e foi mal recebido pelo mercado devido a dúvidas em relação a como essa perda de receita será compensada e por ter se misturado ao pacote de corte despesas.
Para compensar a medida o governo anunciou um imposto mínimo de IR de 10% para quem recebe mais de R$ 50 mil por mês. Esse cenário fez o dólar fechar a R$ 6 na sexta-feira, renovando o valor recorde nominal pelo terceiro dia seguido.
Busca por receitas
O pesquisador e associado do Insper Marcos Mendes disse que o governo terá que continuar com a estratégia de buscar mais receitas para fechar as metas de resultado primário para cobrir despesas que continuarão com crescimento real. Ele explicou que o pacote visa mais uma mudança na composição dos gastos, abrindo espaço para aumentar despesas discricionárias, mediante redução de despesas obrigatórias. O gasto com Saúde e Educação vai continuar pressionando o Orçamento, exemplificou.
Ele destacou que o trabalho do Banco Central de combate à inflação fica mais difícil porque o índice de preços é pressionado pela alta do dólar, como também está acontecendo.
— A inflação desvaloriza parte da dívida pública, resolvendo o problema de endividamento excessivo, mas a economia entra em crise, empobrecendo os mais necessitados, que não conseguem se proteger da inflação e são mais sensíveis à recessão — destacou Mendes.
Arnaldo Lima, da Polo Capital afirma que o mais preocupante é a elevação do ciclo de alta de juros para ancorar as expectativas de inflação. Isso tende a arrefecer o crescimento econômico:
— Por outro lado, caso consigamos avançar com medidas estruturantes do lado da despesa, como a extensão da Reforma da Previdência da União para os entes subnacionais, poderemos voltar para um cenário de redução da taxa de juros real, incentivando o crescimento econômico e acelerando a captação de investimentos estrangeiros.
A treva do ministro Barroso: STF quer criar sozinho uma lei para as redes sociais
Por J.R. Guzzo / O ESTADÃO DE SP
O presidente do STF, pelo que diz em público e pelas decisões que toma, é uma lanterna que funciona ao contrário: sempre que aponta para algum lugar, cria a escuridão imediata sobre tudo aquilo que até então estava claro. A liberdade de expressão, um dos pontos mais luminosos da aventura humana, é para ele e seus colegas uma doença social. Tem de ser combatida, como a febre amarela, e o ministro Luís Barroso faz isso criando o máximo possível de treva no debate sobre o tema.
Sua última barragem de artilharia contra o direito constitucional à palavra livre é uma aula magna sobre os usos da sua lanterna da escuridão. A possível revisão das normas que hoje regulam as redes sociais é claramente um assunto do Congresso Nacional, e de ninguém mais. Só o parlamento está autorizado a fazer leis no Brasil – uma auto evidência óbvia como o sol do meio-dia. Não interessa se são boas, médias ou ruins. São as únicas possíveis. Barroso e o STF discordam. Acham só eles fazem as leis “certas”.
No caso, o presidente do STF diz que os ministros estão criando a legislação de fato sobre a questão, ao julgarem processos relacionados a ela, porque o Congresso ainda não aprovou nenhuma lei para regulamentar as redes sociais. “O tribunal aguardou, por um período bastante razoável, a sobrevinda de legislação por parte do Poder Legislativo”, diz Barroso. “Não ocorrendo, chegou a hora de decidirmos essa matéria”.
É a treva absoluta do oceano a 10 mil metros de profundidade – ali onde a luz não entra, nunca. Na verdade, é raro encontrar tanta falsidade num único pensamento. Onde está escrito, para começar, que o Congresso tem “prazo” para aprovar qualquer tipo de lei? Isso não existe. E quem define o que seria um prazo “razoável”? Prazo, na lei, é prazo: 24 horas, 10 dias, 30 anos. Se não está escrito, não é nada. “Razoável” é um adjetivo; expressa uma opinião, e lei não tem adjetivo, nem opinião.
É integralmente falso, também, que não exista lei regulamentando o uso das redes sociais do Brasil. Existe, sim, há dez anos – é o marco civil da internet. O que não existe, na verdade, é uma lei que o STF goste. O regulamento em vigor preserva a liberdade de expressão, e a liberdade de expressão é a besta-fera fundamental que o STF quer eliminar no Brasil. Exigem a censura prévia e eterna, onde o cidadão é proibido de dizer até mesmo o que ainda não disse - é o que acontece quando lhe cassam o “perfil” e não devolvem.
A liberdade de palavra é uma conquista essencial da humanidade. Barroso, Moraes, Dino etc. acham que é propriedade privada do Estado, a ser dada nas doses que eles querem. Não há nada mais escuro.
Jornalista escreve semanalmente sobre o cenário político e econômico do País
O exemplo da Argentina
Por Notas & Informações / O ESTADÃO DE SP
Uma onda de otimismo tem varrido a Argentina nos últimos meses. O índice S&P Merval teve o melhor desempenho em dólares entre as 20 principais bolsas de valores no mundo, e um fundo de índice (ETF) que acompanha o movimento das ações das principais empresas argentinas negociadas em Nova York registra entradas recordes desde o início do ano. Os investidores perseguem prêmios maiores e alguma segurança, e é isso que Javier Milei tem oferecido.
Em novembro de 2023, a Argentina enfrentava a pior crise econômica das últimas décadas. O ultraliberal foi eleito prometendo zerar o déficit fiscal. Sem maioria no Congresso, Milei começou mal e comprou briga com os governadores, mas cedeu e conseguiu aprovar seu pacote.
Os cortes de gastos começaram a dar resultados. Em janeiro, as contas públicas tiveram saldo positivo pela primeira vez em 12 anos; em outubro, o país registrou o 10.º superávit primário consecutivo. E, pela primeira vez na história argentina, houve saldo suficiente para pagar também o custo dos juros da dívida.
No dia 15 de novembro, a Fitch elevou a nota de crédito da Argentina de CC para CCC, classificação que ainda mantém o país entre aqueles com alto risco de inadimplência, mas a um degrau da categoria de grau especulativo – uma escala ampla na qual o Brasil se encontra, com a nota BB. O risco país, por sua vez, está no nível mais baixo desde 2019.
As taxas de juros estão em 35% ao ano e, somadas à redução dos subsídios nas contas de água, energia, gás e transporte e às demissões no setor público, fizeram o consumo despencar. Em recessão, o PIB recuou 1,7% no segundo trimestre, depois de cair 2,2% no primeiro trimestre e 1,4% no último trimestre de 2023.
O processo, portanto, não tem sido indolor. No primeiro semestre deste ano, nada menos que 15,7 milhões de pessoas viviam abaixo da linha de pobreza, ou 52,9% da população, de acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec). Desde o segundo semestre do ano passado, eram 12,3 milhões, o equivalente a 41,7% da população.
A popularidade de Milei, em queda desde que assumiu o governo, voltou a subir nos últimos meses. E mais recentemente, a despeito das manifestações nas ruas, Milei conseguiu evitar a derrubada de seus vetos à recomposição das aposentadorias e do financiamento às universidades públicas, fundamentais para seu plano fiscal.
Milei sabia que a economia iria piorar muito antes de melhorar e, por isso, apostou todas as suas fichas no controle da inflação. A inflação subiu 2,7% em outubro, taxa mais baixa para o mês dos últimos três anos, e, no acumulado de 12 meses, registrou alta de 193%. É um nível elevadíssimo, mas foi a primeira vez, em meses, que a inflação ficou abaixo dos 200% na Argentina.
Há dúvidas sobre a sustentabilidade desse ajuste no longo prazo. Depois da forte desvalorização do peso no início de seu mandato, o país tem feito uma depreciação controlada, mas a diferença entre a cotação oficial do dólar e a do dólar paralelo (blue) está aumentando, em vez de se aproximar.
Mesmo com o peso sobrevalorizado, a Argentina ainda não conseguiu recompor reservas internacionais. Abandonar o câmbio fixo depende da suspensão do controle de capitais – e é o que o mercado deseja –, mas Milei não pretende fazer nada disso tão cedo. Uma rodada de negociação com o Fundo Monetário Internacional, a quem a Argentina deve mais de US$ 40 bilhões, é dada como certa.
É inegável que Milei tem se esforçado para mostrar que a Argentina mudou. A economia deve recuar 3,5% neste ano, mas deve crescer 5% em 2025, segundo o Banco Mundial. Com tantas dificuldades, o país deu passos corajosos na direção correta, uma atitude que contrasta com a hesitação do governo de Lula da Silva.
A escala e a diversificação da economia brasileira não se comparam às da Argentina. Também por isso, o ajuste fiscal de que o Brasil necessita teria magnitude bem menor e consequências muito mais brandas que as vivenciadas pela população do país vizinho. Neste momento, a Argentina ensina algo ao Brasil: quanto mais se adia o reequilíbrio fiscal, mais amargo é o remédio a ser adotado.
Tribunais federais e estaduais pagam ‘bônus’ a juízes sem decisão do Senado sobre PEC do Quinquênio
Por Weslley Galzo / O ESTADÃO DE SP
BRASÍLIA - Os magistrados de ao menos 14 Tribunais de Justiça (TJs) e cinco Cortes federais do País têm recebido mensalmente benefícios extras em seus contracheques, a título de Adicional por Tempo de Serviço (ATS), mesmo sem o Congresso ter finalizado a discussão da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do Quinquênio, que prevê o pagamento do “bônus” a juízes e procuradores.
A PEC do Quinquênio em tramitação no Senado propõe pôr um fim nas resoluções e atos administrativos aprovados em cada tribunal ao reconhecer o pagamento do penduricalho como um direito constitucional.
O texto é de autoria do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e prevê a volta do pagamento de ATS para carreiras do Judiciário e do Ministério Público a cada cinco anos e, por isso, é chamado de quinquênio. O texto que tramita no Congresso estabelece um acréscimo de 5% nos salários a cada período, que podem chegar até o máximo de 35% do teto constitucional.
O proposta foi debatida intensamente em abril deste ano e chegou a ser pautada para votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, mas não avançou na Casa por causa da pressão de diversos setores, incluindo o governo do presidente Luiz Inácio Lula Silva.
Levantamento realizado pelo Estadão em consulta aos Tribunais de Justiça mostra que o ATS é pago a magistrados em Goiás, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia e São Paulo. Os Tribunais Regionais Federais da 1ª Região (TRF-1) e da 5ª Região (TRF-5) também constam na lista.
Além disso, o Estadão identificou em consulta ao DadosJusBR, projeto da Transparência Brasil que agrega R$ 144 bilhões em contracheques do Judiciário e Ministério Público, outros cinco tribunais de unidades da Federação (Paraíba, Pará, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e Acre) e três federais (TRF-2, TRF-4 e TRF-6) que pagaram rubricas intituladas de ATS e Quinquênio, em 2023.
O Estadão questionou os tribunais sobre as estimativas de custo e impacto financeiro com o pagamento do penduricalho, mas a maioria dos procurados não respondeu. O TRF-5 foi o único a informar o quanto desembolsa com o custeio do benefício. São R$ 62.762,74 por mês com magistrados ativos, R$ 25.744,98 com inativos e R$ 14.758,70 com pensionistas.
A Corte Federal afirmou que não expediu ato administrativo para autorizar o pagamento do quinquênio, como fizeram outros tribunais. O TRF-5 argumentou que “apenas cumpriu a determinação do Conselho da Justiça Federal (CJF), amparada por julgados do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Supremo Tribunal Federal (STF)”.
Em 2022, o CJF autorizou o retorno do pagamento de ATS. O benefício havia sido extinto em 2006, mas foi reincorporado os holerites a partir da mobilização de associações de magistrados, As estimativas da época eram de que os juízes federais com direito ao penduricalho poderiam embolsar até R$ 2 milhões com o pagamento de valores retroativos.
Como revelou o Estadão, em 2023, o então corregedor nacional de Justiça, Luís Felipe Salomão, chancelou o pagamento do penduricalho. Na época, técnicos do TCU realizaram uma auditoria na qual identificaram que o benefício custaria R$ 1 bilhão aos cofres públicos. Foi a partir do ano passado, com respaldo na decisão do CNJ, que as cúpulas das Cortes intensificaram as autorizações de pagamento do bônus.
“São autorizações dos conselhos que não encontram respaldo impresso na legislação. É importante que todo benefício tenha uma lei autorizativa específica e que não seja (criado) via interpretação, ou algo que surgiu do nada”, analisou o coordenador de projetos da Transparência Brasil, Cristiano Pavini. “Deveria ter uma padronização, na qual os órgãos dos Estados não pudessem criar benefícios sem aval dos conselhos nacionais, que seriam atinentes ao que está previsto nas legislações”, completou.
Um exemplo do comportamento dos órgãos do Judiciário é o TJ de Goiás, que restabeleceu o pagamento do penduricalho em janeiro deste ano. Como mostrou o Estadão, a autorização do pagamento foi feita por meio de um procedimento sigiloso. Antes mesmo da volta do ATS, uma série de benefícios pagos pela Corte fez com que 58 juízes recebessem mais de R$ 1 milhão em salários em 2023, conforme levantamento da Transparência Brasil. A instituição figura entre as que pagam os maiores salários do País aos seus membros.
A vice-presidente da ong República.Org, Vera Monteiro, explica que “o fundamento (técnico-jurídico) para que o Judiciário aprove remuneração extra aos magistrados baseada exclusivamente na passagem do tempo, sem considerar desempenho e o teto (remuneratório do funcionalismo público), está na sua autonomia administrativa e financeira”.
A independência dos órgãos do Poder Judiciário permite que cada tribunal defina como aplicar os recursos dos seus respectivos orçamentos. Esse modelo permite que valores discricionários, que poderiam ser utilizados em investimentos, por exemplo, sejam realocados na concessão de verbas indenizatórias adicionais aos salários dos juízes e desembargadores.
Outro caminho adotado por alguns tribunais é emitir portarias espelhando as decisões do CJF e CNJ que autorizaram o pagamento dos benefícios.
O Estadão revelou que os pagamentos de valores milionários a título de ATS e saldos retroativos do penduricalho nos TJs de São Paulo e Paraná têm sido comunicados por mensagens informais de WhatsApp. Na Corte paranaense, a tônica da eleição para presidente foi marcada por promessas de quem garantiria o maior número de vantagens e asseguraria os depósitos dos valores retroativos do benefício.
Somente em outubro deste ano, o chefe do Poder Judiciário do Paraná autorizou o pagamento de R$ 27,4 milhões aos juízes e desembargadores a título de ATS e Gratificação por Acúmulo de Função (GAF), benefícios estes que são regulamentados por atos do próprio TJPR. O presidente do TJPR, Luiz Fernando Tomasi Keppen, argumenta que os valores foram distribuídos a 12 mil pessoas e são relativos a salários e passivos trabalhistas.
Na discussão em curso sobre o tema no Senado, os principais argumentos contra a volta do Quinquênio estão relacionados ao privilégio setorial e ao impacto financeiro que a medida geraria. Caso passe pelo crivo do Congresso Nacional, a proposta vai gerar um impacto anual de R$ 40 bilhões, de acordo com uma estimativa do governo federal.
Já as associações e grupos organizados do Poder Judiciário argumentam que o benefício é necessário para compensar defasagens salariais e reter talentos no funcionalismo público.