A busca do equilíbrio
Por Merval Pereira / o globo
A reação dos parlamentares às exigências do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino para o pagamento das emendas a que têm direito mostra que o interesse deles é particular, e não coletivo, como deveriam ser seus projetos. O ministro nada mais fez do que detalhar o que já era exigido quando mandou parar de pagar as emendas: a transparência do envio dos recursos do Tesouro Nacional a que cada parlamentar tem direito.
Incomodaram-se os senhores deputados e senadores com critérios técnicos exigidos pelo ministro do Supremo, como identificação do deputado que endereçou a emenda e de quem a recebeu, prefeitura ou organização não governamental. Também uma boa inovação foi exigir que as emendas para Saúde sejam aprovadas pelo ministério seguindo “orientações e critérios técnicos” estabelecidos por ele e por comissões de gestores estaduais e municipais.
Outros ministérios deveriam ter entrado nessa exigência, para que as verbas federais fossem investidas em programas coerentes com as linhas de ação do governo eleito. A partir do momento em que Executivo e Legislativo chegaram a um acordo a respeito das emendas parlamentares, não restava outra saída a Dino senão as liberar. Ele havia suspendido o pagamento e esperava uma definição dos dois outros Poderes. Depois que o governo aceitou as verbas imensas — são R$ 50 bilhões — e fechou acordo com o Congresso, ele criaria uma crise enorme caso não aceitasse.
A exigência de transparência, ponto central da decisão de Flávio Dino quando suspendeu as emendas, precisa ser acompanhada para ver como será cumprida. Tenho a impressão de que, em vários casos, poderá haver impugnação, e o STF terá de intervir. Mas, de qualquer maneira, já é uma vitória o Congresso assumir a obrigação de ser transparente e de explicar a origem e a destinação das verbas liberadas. Depois desse susto, creio, haverá contenção dos parlamentares. Será preciso acompanhar a execução; certamente será mais fiscalizada, e haverá muitas denúncias. Não é o ideal, mas é o possível.
Pela decisão, as verbas das emendas de comissão e dos restos a pagar do orçamento secreto só poderão ser executadas caso o parlamentar solicitante seja identificado nominalmente no Portal da Transparência. As “emendas Pix”, liberadas sem que se soubesse quem mandou e onde foram gastas as verbas, terão de obedecer a um plano de trabalho, estabelecidos objeto e prazos para a obra, que terá de ser aprovada pelo governo.
Dino tenta, assim, organizar a distribuição de verbas públicas para que não sejam pulverizadas em projetos que não combinam com o plano nacional que o governo eleito tenha escolhido. Com essas medidas, o equilíbrio entre Executivo e Legislativo será alcançado, e o parlamentarismo à brasileira imposto pelas circunstâncias políticas será minimizado.
Não adianta nada ao país, num momento em que é preciso equilibrar as contas públicas, distribuir uma verba gigantesca para que os parlamentares gastem à vontade, sem que tenham de prestar contas em muitas ocasiões. Os parlamentares enxergam nessas exigências de Dino uma combinação com o Palácio do Planalto para equilibrar o jogo político, que, desde que Bolsonaro decidiu abrir mão de governar para tramar seu golpe de Estado, pendia para o Legislativo. As circunstâncias políticas neste momento beneficiam o governo. O plenário virtual já formou maioria para a aprovação das exigências de Flávio Dino.
Os parlamentares terão de partir para a chantagem explícita se quiserem resistir. O pouco tempo para aprovação do pacote do governo neste ano pode jogar a favor dos políticos, mas contra o país. Também a falta de convicção do governo Lula em relação ao corte de gastos ajuda a complicar a situação.
Por que vivemos em uma era dominada pelo surpreendente encanto da ignorância?
Por Mark Lilla* (The New York Times) / o estadão de sp
Aristóteles ensinou que todos os seres humanos desejam o conhecimento. Nossa própria experiência nos ensina que todos os seres humanos também desejam não conhecer, às vezes vorazmente. Isso sempre foi verdadeiro, mas há certos períodos históricos em que negações de verdades parecem assumir uma vantagem, como se algum vírus psicológico se espalhasse de maneiras misteriosas, com o antídoto subitamente impotente. O atual período é um desses.
Cada vez mais gente rejeita atualmente a racionalidade, classificando-a como um empenho inútil que serve apenas para disfarçar maquinações do poder. Outras pessoas sentem, em vez disso, que têm um acesso especial à verdade que as exime de questionamentos, como uma protelação esboçada. Multidões em transe seguem profetas disparatados, rumores irracionais engendram atos de fanatismo, e pensamentos mágicos expulsam e substituem o senso comum e a experiência. E ainda por cima disso tudo profetas das elites pregam ignorância, pessoas escolarizadas que desprezam o conhecimento, idealizam “o povo” e o encorajam a resistir à dúvida e erguer muralhas em torno de suas crenças imutáveis.
Sempre é possível encontrar causas históricas imediatas dessas irrupções de irracionalidade: guerras, colapsos econômicos, mudanças sociais. Mas buscá-las pode desviar-nos do reconhecimento de que a fonte definitiva encontra-se num ponto mais profundo, dentro de nós mesmos e do próprio mundo.
O mundo é um lugar recalcitrante, e há coisas sobre o mundo que preferimos não reconhecer. Algumas são verdades inquietantes sobre nós mesmos; as coisas mais difíceis de aceitar. Outras são verdades sobre a realidade que nos cerca, que, uma vez reveladas, nos furtam crenças e sentimentos que de algum modo melhoram e facilitam nossas vidas — ou pelo menos dão a parecer que o fazem. A experiência do desencanto é tanto dolorosa quanto comum, e não surpreende que um verso de um poema inglês, que não fosse por isso acabaria esquecido, tornou-se um provérbio comum: a ignorância é uma bênção.
Qualquer um de nós é capaz de encontrar motivos para nós mesmos e outras pessoas evitarem conhecer certas coisas, e muitos desses motivos são perfeitamente racionais. Seria um despropósito uma trapezista prestes a subir na plataforma consultar a tábua de expectativa de vida para profissionais de sua área. Até mesmo a pergunta, “Você me ama?”, deveria passar por vários questionamentos mentais antes de ser pronunciada.
Mas todos nós também possuímos uma disposição básica de conhecer, uma maneira de levar nossas vidas no mundo conforme as experiências que aparecem no caminho. Algumas pessoas são apenas naturalmente curiosas sobre como as coisas chegaram a ser o que são. Gostam de enigmas, gostam de investigar, gostam de aprender por quês. Outras são indiferentes em relação ao conhecimento e não veem nenhuma vantagem particular em fazer perguntas que lhes parecem desnecessárias para simplesmente seguir a vida.
E há pessoas que, seja por que for, desenvolveram uma antipatia particular em relação à busca do conhecimento, cujas portas internas foram trancadas a sete chaves contra qualquer coisa que possa colocar em dúvida o que elas acreditam que já conhecem. Essas atitudes não se limitam aos pouco escolarizados; são estados de espírito que emergem em todos nós, por mais atípicos que possam parecer.
Por que isso ocorre? Porque procurar e obter conhecimento não é uma busca apenas cognitiva, é também uma experiência emocional. O desejo de conhecer é exatamente isso: um desejo. E sempre que nossos desejos são satisfeitos ou frustrados nossos sentimentos também estão envolvidos.
Dada a intensa rapidez com que tudo muda na vida hoje em dia, não é melhor nos fiarmos com frequência nas conquistas intelectuais e morais que já alcançamos? Por que buscar a verdade se a verdade exige de nós o árduo trabalho de repensar o que já conhecemos? Da mesma forma que somos capazes de desenvolver um amor pela verdade que nos incita ao interior, nós podemos também, portanto, desenvolver um ódio pela verdade que nos preenche com uma sensação apaixonada de propósito. É possível que haja um conflito de emoções, com o desejo de defender nossa ignorância levantando-se como um adversário poderoso ao desejo de escapar dela.
Uma fonte desse conflito é considerarmos nossas opiniões prolongamentos de nós mesmos, como próteses. Quando elas são atacadas ou descartadas, nós sentimos que algo íntimo foi atingido. E quando nossas opiniões provam-se erradas, sentimos vergonha. Sócrates sustentava que não é vergonhoso estar errado, que vergonhoso é fazer algo errado. Ele estava certo. Mas não é assim que nos sentimos inicialmente, em especial quando outra pessoa expõe nossos erros.
Todo argumento tem dono. Por trás de toda afirmação há um afirmador; e é ele, não seu argumento, que fere nosso orgulho. Por mais estranho que possa parecer, matemáticos e cientistas que debatem questões distantes de suas vidas podem ser tão dogmáticos e melindrosos quanto qualquer correligionário político. Uma nova partícula elementar é descoberta: será um salto gigantesco para a humanidade ou um ponto para o nosso time?
Em algum momento todos nós recusamos a oportunidade de descobrir o que é realmente verdade. Nós abrimos mão voluntariamente de conhecer a verdade sobre o mundo por temer que ela exponha verdades sobre nós mesmos, especialmente nossa falta de coragem para o autoescrutínio. Nós preferimos a ilusão da autossuficiência e aceitamos nossa ignorância por razões exclusivamente próprias. Não importa que confiar em opiniões falsas seja a pior forma de dependência. Não importa que a teimosia possa nos fazer prescindir da felicidade. Nós preferimos afundar com o navio do que cair no esquecimento.
Então, da mesma forma que discordamos das pessoas que se encantam com charlatões e demagogos, não devemos eximir a nós mesmos. Nós queremos conhecer — e queremos não conhecer. Nós aceitamos a verdade — e resistimos à verdade. A mente vai e vem, numa partida de badminton consigo mesma. Mas essa dinâmica não parece um esporte; em vez disso, nos dá a parecer que nossas vidas estão em jogo. E estão./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Lula esvazia Anatel e dá ‘chave do cofre’ de leilões a Juscelino Filho
Por Roseann Kennedy / o estadão de sp
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu um presente de Natal antecipado ao ministro Juscelino Filho, das Comunicação. Em decreto presidencial publicado nesta segunda-feira, 02, Lula passou ao ministro do Centrão o controle sobre recursos provenientes de leilões de radiofrequência.
O decreto dá poder à pasta de Juscelino para definir, inclusive, saldos remanescentes de leilões já realizados. Ou seja, o Ministério das Comunicações vai controlar o dinheiro oriundo do Leilão do 5G, um dos mais cobiçados da Esplanada dos Ministérios. Procurado o Ministério não respondeu às indagações da Coluna do Estadão.
O leilão realizado em 2021 rendeu cerca de R$ 3,1 bilhões para o governo usar principalmente para projetos de internet em escolas. Até então, a gestão do recurso cabia à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). A Anatel disse que “ainda está analisando as consequências do decreto e aguarda eventuais portarias que efetivamente alterem o trabalho que está sendo feito para entender as consequências”.
Conforme o decreto de Lula, caberá à pasta de Juscelino Filho “definir e disciplinar as atribuições e a estrutura de governança aplicáveis aos compromissos realizados a partir do aporte de recursos pelas vencedoras de leilões de autorização para o uso de radiofrequências”. Juscelino Filho chegou a ter o cargo ameaçado no início do governo por conta de escândalos que renderam críticas de aliados mais próximos de Lula.
Entre os fatos que colocaram o ministro sob pressão, a viagem que ele fez usando estrutura da Força Aérea Brasileira (FAB) para ir a leilão de cavalos de raça em São Paulo e o uso de emendas parlamentares, da época de deputado, para asfaltar estrada que corta fazendas dele no interior do Maranhão. Os casos foram revelados pelo Estadão.
A ‘aula’ de Lira e Pacheco
Por Notas & Informações / o estadão de sp
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, passou os últimos dias tentando convencer os investidores de que o pacote fiscal que anunciou na semana passada não é de todo ruim. A tarefa, por si só, já seria desafiadora depois do trágico pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV da noite de quarta-feira, mas Haddad parecia contar com a boa vontade do mercado para emplacar a ideia de que houve, na verdade, mera falha de comunicação.
Essa estratégia repisada é retomada de tempos em tempos e, eventualmente, funciona, a depender do ânimo e da paciência dos interlocutores. Foi com esse espírito que Haddad foi recebido em um evento organizado pela Federação Brasileira de Bancos (Febraban). A cúpula da entidade saiu do almoço convencida de que o ministro é o único capaz de fazer um ajuste no governo Lula da Silva, e de que esse ajuste, mesmo que insuficiente para reequilibrar as contas públicas, seria o ajuste possível neste momento.
Naquele dia, no entanto, o que realmente trouxe algum alívio ao mercado financeiro na sexta-feira não foi o discurso do ministro, mas o alinhamento demonstrado pelos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Ambos sinalizaram não ter pressa para analisar a isenção de Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais.
Pacheco disse que é preciso afastar o medo da impopularidade quando se trata de medidas fiscais. “É importante que o Congresso apoie as medidas de controle, governança, conformidade e corte de gastos, ainda que não sejam muito simpáticas”, afirmou, por meio de nota. “Inclusive outras podem ser pensadas, pois esse pacote deve ser visto como o início de uma jornada de responsabilidade fiscal.”
Lira, por meio de suas redes sociais, disse que toda medida de corte de gastos contará com o esforço, a celeridade e a boa vontade da Casa. “Qualquer outra iniciativa governamental que implique renúncia de receitas será enfrentada apenas no ano que vem, e após análise cuidadosa e, sobretudo, realista de suas fontes de financiamento e efetivo impacto nas contas públicas”, afirmou.
Em conjunto, as declarações de Pacheco e Lira fizeram a cotação do dólar à vista recuar a R$ 5,9594, depois de alcançar a marca de R$ 6,10 mais cedo. Não foi suficiente, por óbvio, para reduzir a volatilidade de maneira definitiva, mas só isso deveria ser suficiente para Haddad fazer uma reflexão sobre seu papel no governo.
Em primeiro lugar, porque nem Lira nem Pacheco podem ser considerados exemplos de austeridade. E em segundo lugar, porque, em tempos normais, seria o ministro quem teria de comprar briga com um benevolente Legislativo para defender o pacote fiscal. Afinal, ser o chato da história é, essencialmente, o trabalho do ministro da Fazenda. Quando ele recebe elogios, e, sobretudo, quando esses elogios vêm da ala política do governo, é bem provável que não esteja cumprindo bem o seu papel.
Haddad disse que o pacote que apresentou não representa o “gran finale” ou a “bala de prata” do esforço fiscal do governo e destacou que outras medidas podem ser anunciadas em três meses, caso seja necessário. Já seria difícil de acreditar, tendo em vista o longo processo de negociação do pacote nas últimas semanas e a pretensão de Lula da Silva de candidatar-se à reeleição em 2026. Mas, para piorar, na noite de sexta-feira, a equipe econômica surpreendeu todos com um relatório extemporâneo de receitas e despesas.
Uma semana após a divulgação do relatório bimestral, o governo reduziu a necessidade de bloquear gastos discricionários do Orçamento deste ano de R$ 6 bilhões para R$ 4,3 bilhões. A despeito do avanço das despesas obrigatórias, a mágica se tornou possível após o governo zerar os recursos a serem repassados a Estados e municípios por meio da Lei Aldir Blanc de incentivo à cultura.
O valor, por óbvio, é pequeno ante o volume das despesas. Mas, no contexto geral, o relatório é mais uma evidência a reforçar a impressão de que o problema não é a comunicação, mas a falta de convicção do governo sobre a importância do ajuste fiscal. É essa a razão de tanta instabilidade dos mercados.
Os banheiros de Lula
Por Notas & Informações / o estadão de sp
Em evento recente, o presidente Lula da Silva, manifestando indignação com a informação de que milhões de brasileiros não têm banheiros em suas casas, informou ter mandado o Ministério das Cidades elaborar um programa para resolver o problema. Lula disse ter tomado conhecimento do déficit de banheiros pela TV – o que é espantoso, não só porque essa informação está disponível há tempos em diversos estudos na área de saneamento, mas também porque o presidente dispõe de quase quatro dezenas de ministros, e é incrível que nenhum desses assessores tenha chamado sua atenção para esse terrível drama dos brasileiros.
Tudo, claro, não passou do conhecido jogo de cena de Lula. Pressionado pelo imperativo de ter que conter as crescentes despesas do governo, o petista quis mais uma vez mostrar-se sensível às demandas dos brasileiros mais pobres, que só não são plenamente atendidas por ele porque tecnocratas desalmados da área econômica só falam em cortar gastos. A propósito, na mesma ocasião, Lula ainda deu um pito no Ministério da Fazenda: “Não venha dizer que isso é gasto. É decência, é respeito”.
É evidente que mandar construir banheiros para quem não tem é uma medida humanitária, mas não resolve o problema de fundo: a crônica falta de saneamento básico, fruto de décadas de incompetência das estatais do setor, incapazes de cumprir as metas de universalização dos serviços. E é justamente o PT de Lula quem costuma se insurgir contra a privatização dessas empresas, essencial para que finalmente chegue água limpa e esgoto tratado para quem ainda não tem, fazendo com que esse vergonhoso atraso nacional finalmente acabe.
De acordo com o Instituto Trata Brasil, mais de 90 milhões de brasileiros (quase 45% da população) não têm acesso à coleta de esgoto. Se o presidente quiser ler o estudo, está disponível no site do Instituto, que é responsável também pela pesquisa cujos números o indignaram – segundo aquele levantamento, 1,332 milhão de moradias (1,8% do total de residências no País) não têm banheiro exclusivo.
A questão, portanto, é muito simples: se quase metade da população não tem saneamento, a construção de banheiros sem interligação com a rede de esgoto é inócua.
Daí a importância do Marco do Saneamento, aprovado tardiamente em 2020, a despeito da oposição petista, e que estabeleceu que 90% dos brasileiros devem ter acesso à coleta de esgoto até 2033. Já há avanços na área, mas no ritmo atual o volume de investimentos precisaria dobrar anualmente para que as metas sejam cumpridas no prazo estabelecido.
Há ainda a questão dos investimentos que os moradores precisam fazer para que suas casas estejam efetivamente conectadas a redes de esgoto, o que, aí sim, exige política pública direcionada em apoio aos mais pobres, que não conseguem bancar tal conta sozinhos. Portanto, apenas construir banheiros não basta, especialmente quando o primeiro passo, que é a universalização do saneamento, segue sendo apenas uma promessa para milhões de brasileiros.
ONG investigada recebe R$ 90 milhões de emendas, foca games e tem suspeita de sobrepreço
Uma ONG com breve histórico de atuação em Anápolis (GO) recebeu mais de R$ 90 milhões em 26 emendas parlamentares nos últimos três anos para ações que vão de competições de jogos eletrônicos em dez estados a controle de zoonoses no Acre.
Nas ações de games, maior foco da entidade com o uso de emendas, boa parte dos recursos recebidos é atribuída a aluguéis de computadores com valor equivalente a 11 vezes o preço de compra, de acordo com os documentos oficiais obtidos pela Folha. A ONG ainda usa cerca de 40% do dinheiro das emendas em festas de abertura ou encerramento.
A Associação Moriá é comandada por militares e ex-integrantes do governo Jair Bolsonaro (PL). Ela está entre as 10 ONGs na mira de um relatório da CGU (Controladoria-Geral da União).
O órgão de controle encaminhou detalhes ao STF (Supremo Tribunal Federal) sobre essas organizações após determinação do ministro Flávio Dino para um pente-fino em despesas com emendas. Com relação à Moriá, identificou gastos "evitáveis" de R$ 1,7 milhão somente em dois desses convênios. A Controladoria também aponta "ausência de análise crítica" na aprovação de orçamentos pelo governo federal.
A Moriá nega qualquer tipo de irregularidade. "Os programas executados pela entidade atenderam todas as etapas estabelecidas pelo Executivo federal, respeitando todos os requisitos, critérios e padrões contratados", afirmou a ONG em nota.
No Orçamento 2024, a entidade recebeu emendas para levar os "Jogos Estudantis Digitais (Jedis)" para Goiás, Alagoas, Amazonas, Rondônia, Bahia, Minas e Distrito Federal. O objetivo é ensinar em escolas jogos online como Valorant, LOL, eFootball e Free Fire. Só a bancada do DF na Câmara destinou R$ 37 milhões.
Um dos projetos em execução, os Jogos Estudantis Digitais de Brasília, prevê no plano de trabalho o atendimento de 300 jovens em 10 núcleos (3.000 pessoas). Mas as contratações de cursos, camisetas, medalhas e outros itens são para 5.000, conforme plano de trabalho acessado pela Folha em plataforma de transparência do governo.
Esse plano foi aprovado pelo Ministério do Esporte, de cujo orçamento saiu a emenda. A pasta não respondeu aos questionamentos da Folha.
Segundo a CGU, "não há um padrão e também não há critério claro por parte do gestor federal para aprovação e análise dos planos de trabalho, mesmo se tratando de itens idênticos".
"O que demonstra subjetividade e ausência de análise crítica do gestor (supervisão) na aprovação dos orçamentos encaminhados pelos proponentes. Isso está associado ao risco de sobrepreço em aquisição de bens e serviços", diz o órgão.
A ONG foi criada em 2017 pelo pastor Marcos Araújo e sua esposa Elida. Até 2022, o histórico da entidade com políticas públicas se restringia a um evento natalino em Anápolis e a dois convênios, de R$ 40 mil, com a prefeitura local.
Em 2022, ela recebeu uma emenda de R$ 4 milhões do deputado Pedro Augusto (PP-RJ) para organizar os jogos em dez núcleos no Rio. Ao assinar o termo de fomento, na última semana do governo Bolsonaro, a organização mudou de mãos: já era presidida por Gustavo Henrique Fonseca de Deus.
Ex-militar, Fonseca de Deus trabalhou na área de gestão de projetos de Esporte no então Ministério da Cidadania, como funcionário terceirizado. Chegaram depois à ONG o capitão reformado José Ferreira de Barros, seu colega na Marinha, e Daniel Raomaniuk Pinheiro Lima, que comandou a assessoria jurídica do Ministério da Saúde na gestão de Ricardo Barros (PP) após trabalhar para a esposa do agora deputado federal.
Ferreira de Barros e Pinheiro Lima são, respectivamente, vice-presidente e diretor administrativo da ONG.
Com nova direção e endereço em Brasília, a Moriá foi uma das ONGs que mais receberam emendas no Orçamento de 2024, com 13 vinculadas a cinco ministérios.
Um dos projetos em em execução, em Brasília, prevê a locação de 62 computadores para o Jedis-DF ao custo de R$ 2,2 milhões para um período de dez meses. O valor total equivale a R$ 35 mil por unidade.
Um computador similar (com processador de 5ª geração e tela 24 polegadas) custa menos de R$ 3.000 no site de compras Amazon. A CGU, por exemplo, identificou custo médio de R$ 4.500 para comprar as máquinas.
O projeto do Jedis-DF aprovado pelo Ministério do Esporte também prevê outros itens de mobiliário como cadeiras gamers (R$ 940 mensais) e TVs 43 polegadas (R$ 1.800 mensais), fornecidos pela mesma empresa que alugou um carro popular por R$ 50 mil anuais, sem citar modelo ou condições.
O contrato prevê o pagamento de 15 dias de aluguel de cada peça (R$ 900 no caso de uma TV) para a empresa transportá-la de uma escola a outra e instalá-la.
A ONG diz, em nota, que a locação é "sempre mais vantajosa" do que a aquisição. "Os preços contratados pela Moriá para a locação contemplam também a montagem, a desmontagem, o fretamento e a configuração das máquinas —custo bastante elevado", disse a nota.
Os projetos foram aprovados pelo Ministério do Esporte, que agora analisa os planos de trabalho e julga a prestação de contas do primeiro Jedis, no Rio. A pasta impôs sigilo aos documentos.
A partir de sete emendas da agora ex-deputada Perpétua Almeida (PC do B), a Moriá ampliou sua área de atuação em 2023, firmando um convênio de R$ 6,7 milhões com o Ministério da Saúde para monitorar a controlar vetores de arbovírus, como o da dengue, nas cidades de Rio Branco e Cruzeiro do Sul, no Acre.
Perpétua não respondeu a Folha.
Questionada sobre como comprovou capacidade técnica para atuar no combate à dengue, a Moriá disse que "conta com colaboradores experientes e renomados, que constam no plano de trabalho" e citou que o responsável técnico pelo projeto é um biólogo com experiência na área.