O Estado brasileiro, esse demiurgo, é feito para destruir os cidadãos
Luiz Felipe Pondé Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP / FOLHA DE SP
Sempre tive uma paixão anarquista. Assim como o filósofo britânico do século 20 Michael Oakeshott falava acerca da disposição conservadora, eu falaria de uma disposição anarquista em algumas pessoas.
Pressinto que toda forma de poder deve ser objeto de desconfiança, mas, considerando as diferenças da duas formas conhecidas de anarquismo —o socialista e o anarcocapitalista—, não partilho de nenhuma das crenças alimentadas por elas por julgá-las bobas e equivocadas. O que faz de mim um anarquista sem pátria.
Além do fato, óbvio, de que parece absurda a ideia de que possamos viver sem alguma forma mínima de Leviatã, o que considero um modo específico de tragédia humana.
Se atentarmos para algumas das ideias do príncipe anarquista russo Piotr Kropotkin no seu volume "O Princípio Anarquista e outros Ensaios", editora Hedra —ou mesmo na sua biografia "Peter Kropotkin, From Prince to Rebel", de príncipe a rebelde, de George Woodcock e Ivan Avakumovic, da Black Rose Books—, o autor descreve a emergência da ideia de estado como um processo que destrói a autonomia originária das populações que viviam em comunidades livres e sem propriedade privada. Portanto, há uma tentativa de gênese histórica do poder.
Além desse olhar, suas viagens de exploração geográfica pela vasta Sibéria deram a ele a clara percepção da crueldade de qualquer forma de poder e sua inviabilidade de operar fora do mecanismo de esmagamento das pessoas sob sua tutela.
Kropotkin reconhece ao longo da sua obra o valor de outros anarquistas socialistas como William Godwin —pai da escritora Mary Shelley—, Mikhail Bakunin, Pierre-Joseph Proudhon e Max Stirner —todos viveram entre os séculos 18 e 19. Entretanto, reconhece também a tendência à pura negatividade das propostas "nunca mais autoridade, nunca mais propriedade privada", aparentemente pecando pela falta de um anarquismo propositivo.
O autor entendia que a presença das formas de poder na história iria se desfazer na medida da sua incompetência em gerir a vida humana, e seu modo social e político. O mundo se transformaria naquilo que nunca deveria ter deixado de ser: um cotidiano social de partilha, solidariedade e liberdade absoluta. Ele via este processo como inevitável, levando-o a romper com a revolução bolchevique por considerar que toda forma de poder degenera em autoritarismo.
Kropotkin considerava a empreitada enciclopédica de filósofos como Voltaire uma ferramenta essencial para a anarquia porque colocava ao alcance de todos a filosofia, que, na sua opinião, era a arma fundamental contra os "esfomeadores" que torturavam as pessoas com seus homens de negócios, padres e professores universitários e sua linguagem incompreensível.
Lembre que o nosso príncipe não conheceu autores como Martin Heidegger ou Jacques Lacan, mas, que teve ao seu alcance nomes como Hegel, Schelling e Fichte, típicos filósofos alemães das universidades, portadores de linguagem complicadíssima.
O anarquista russo defendia a "ciência da mutualidade", princípio para o qual as pessoas e sociedades tendem, quando são deixadas em paz para gerir suas vidas sem a intervenção estatista que visa destruir essa vocação humana para a mutualidade.
Temo que essa natureza humana não exista, e aqui volto à crítica esboçada acima. A utopia do príncipe tem toda a história humana contra ela. O ser humano não parece capaz de realizar essa mutualidade da qual ele fala.
Soando quase Rousseau, o anarquismo socialista morre na praia sempre, pelo menos com os seres humanos que existiram e existem. A própria ideia de um "homem natural solidário", enterrado sob a violência das formas estatistas, parece empiricamente voltada ao fracasso histórico.
O anarco-capitalista Murray Rothbard, do século 20, dizia que o Estado era um bando de ladrões em escala —concordo com ele. Em se tratando deste discípulo de Von Mises da Escola Austríaca liberal, defensora do estado mínimo, o equívoco estaria em crer que contratos privados a partir de interesses pessoais e empresariais seriam suficientes para organizar a vida em sociedade. A liberal radical Ayn Rand, como Von Mises, defensora do estado mínimo, criticava justamente essa ilusão de que uma sociedade dessa ficasse de pé sem degenerar em lugares do tipo Sudão e similares.
O Estado brasileiro, esse demiurgo, é feito para destruir o cidadão. Os criminosos operam livremente e sob suas graças. De todos os poderes, hoje, o mais perigoso é o Poder Judiciário e associados. Leniente com bandidos, o Judiciário hoje destrói quem ele quiser.