Diferença entre população e eleitorado levanta suspeita de fraude em votações
Por Editorial / O GLOBO
A reação enérgica e necessária das autoridades à campanha de desinformação contra a urna eletrônica pode ter dado a impressão de que as eleições brasileiras estão à prova de fraudes, mas não é bem assim. Embora o sistema digital de votação esteja comprovadamente blindado, outras modalidades de burla podem subverter a vontade do eleitor. É no mínimo espantoso que haja no Brasil 845 cidades com mais eleitores que habitantes. Em 511 delas, enquanto o eleitorado se expandia, a população encolhia. É evidente que todos esses municípios despertam suspeita de fraudes eleitorais.
O caso de Mangaratiba (RJ) é o mais gritante. O município da Costa Verde tem, pelos últimos dados do IBGE, 41,2 mil moradores e 46,8 mil eleitores, quase 9 mil deles inscritos a partir de 2020, período em que o município perdeu 1.596 habitantes. De acordo com denúncias à Justiça Eleitoral, parte dos novos inscritos vendeu o voto na última eleição. A vitória de Luiz Claudio Ribeiro (Republicanos) por 125 votos sobre Aarão de Moura Brito (PP) foi questionada na Justiça. Ribeiro, como revelou O GLOBO, recebeu votação maciça em seções abertas para acolher novos eleitores. O processo na Justiça Eleitoral precisa de um desfecho exemplar para desestimular fraudes.
A legislação não impede que o domicílio eleitoral seja diferente do residencial. Mas é preciso comprovar alguma relação com o local em que se opta por votar. A própria lei prevê esse tipo de fraude ao estabelecer que a Justiça pode determinar checagem de votos se as transferências de domicílio eleitoral excederem em 10% as da eleição anterior ou se o número de eleitores for maior que 65% da população local estimada pelo IBGE. Em Mangaratiba, apenas nos primeiros cinco meses do ano, 5,5 mil pediram registro eleitoral, mais de 10% da população.
Há diversos casos semelhantes espalhados pelo país. Maracanã (PA), com 27,4 mil eleitores em 2024, ganhou 3.848 novos a partir de 2020, enquanto a população perdeu 2.309 habitantes. Terra Alta, no mesmo estado, com eleitorado de 13.325, registrou 2.761 novas inscrições desde 2020, período em que a população perdeu 1.032 habitantes. Ferreira Gomes (AP) passou a ter 8.288 eleitores depois da transferência de 2.810 domicílios eleitorais, apesar de a população ter retrocedido em 822 pessoas. Em Ocara (CE), houve a chegada de 2.821 eleitores, e a população sofreu queda de 615 habitantes.
Pequenas cidades interioranas costumam passar por esvaziamento demográfico, com a saída dos mais jovens para centros urbanos. Isso torna inexplicável a ampliação do eleitorado. Mangaratiba, por estar perto de um grande centro, chama mais a atenção. Nos estados e municípios menores, esse tipo de burla só será detectado em uma análise acurada das estatísticas eleitorais e demográficas. É fundamental que o Ministério Público Eleitoral cuide disso.