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A diferença entre Lula e Bolsonaro em relação ao sigilo do que fazem as primeiras-damas

Por Francisco Leali / O ESTADÃO DE SP

 

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva, agora a vidraça, vê as pedras que jogou na direção do governo Jair Bolsonaro voltarem contra si. Na campanha de 2022, o petista deu status de debate eleitoral à cobrança por falta de transparência na gestão do ex-capitão. De 2019 a 2022, Bolsonaro tentou minar a lei que obriga o Estado a dar acesso a documentos públicos, usou e abusou do sigilo.

 

No caso mais notório, o governo passado carimbou 100 anos de segredo para a apuração do Exército sobre a participação do então ministro e general Eduardo Pazuello num ato político sem autorização do comandante da Força. Ministérios vários seguiram o mesmo script já que o exemplo vinha de cima. Alguns exemplos: nomes de quem visitou a primeira-dama Michelle Bolsonaro no Palácio da Alvorada e telegramas do Itamaraty sobre a prisão do ex-jogador Ronaldinho Gaúcho no Paraguai e de médico bolsonarista no Egito, e a carteira de vacinação do presidente.

 

Cara-a-cara com o adversário em debate televisivo, Lula tirou o assunto do bolso: “Vou pegar o seu sigilo e vou botar o povo brasileiro saber porque porque você esconde tanta coisa. Afinal de contas, se é bom não precisa esconder”.

 

Um corte com a cena do petista fazendo a ameaça-promessa começou a ser compartilhado pelos aliados de Bolsonaro a partir da revelação feito pelo Estadão. Como mostrou o repórter Tácio Lorran, repetindo Bolsonaro, a gestão de Lula também impôs o sigilo de 100 anos a documentos que cidadãos tentaram ver.

 

Costuma-se pregar que na democracia o sigilo deve ser raro. Mas como aponta o pesquisador norte-americano Mark Fenster, a administração pública, ainda que obrigada por mecanismos legais a ser transparente, pode preferir a opacidade.

 

“No decurso normal do seu funcionamento burocrático, as organizações públicas criam impedimentos institucionais que obstruem a observação externa. Às vezes fazem isso inadvertidamente, às vezes deliberadamente; às vezes com boas intenções, mas às vezes com intenções antiéticas ou ilegais”, diz Fenster.

 

Dito de outra forma, todo governo tem seus segredos. Alguns justificáveis, outros nem tanto. No caso dos 100 anos vale uma breve explicação que serve tanto a Bolsonaro como a Lula, porque a legislação que trata do assunto vale para ambos.

 

A Lei de Acesso à Informação tem um artigo, o 31, estabelecendo que as informações que o Estado detém sobre a “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas” devem ficar protegidas por sigilo de um século. Esse artigo serve para, por exemplo, o governo negar acesso a um documento pessoal que esteja sob a guarda oficial.

 

Agora, quando se trata de servidores públicos no exercício da função ou pessoas politicamente expostas o critério, pelo menos teoricamente, deve ser outro. Assim, se o general Pazuello foi investigado pelo Exército e depois absolvido, qualquer cidadão pode e deve ter direito de saber o que se passou no âmbito da administração para fazer seu juízo de que a administração pública atuou como se espera.

 

Mas a gestão Bolsonaro disse não. O Exército queria guardar os documentos do ex-ministro da Saúde, hoje deputado federal, por 100 anos.

 

O governo passado fez o mesmo quando um cidadão que se identificou como jornalista da BBC Brasil pediu a lista de pessoas que visitaram a primeira-dama Michelle Bolsonaro no Alvorada. Resposta na época: “Prezado cidadão, esclarecemos que as informações solicitadas dizem respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, protegidas com restrição de acesso, nos termos do artigo 31 da Lei de Acesso à Informação”. Pronto, estava ali dito sem dizer: isso só vamos revelar daqui a 100 anos.

 

Lula prometeu mudar isso. Assumiu o cargo e a Controladoria-Geral da União (CGU) foi incumbida de rever os casos de pedidos de informação em que a gestão Bolsonaro optou pelo segredo. O trabalho foi feito e boa parte das informações foi aberta. Uma delas justamente as visitas à senhora Michelle. E ficamos sabendo que por baixo do manto do sigilo estavam 565 registros de entrada na residência oficial do Alvorada entre janeiro de 2021 e dezembro de 2022. Na lista tinha pastor e “personal stlyist”, entre outros.

 

No novo governo, uma pessoa fez pedido similar sobre a atual primeira-dama Rosângela da Silva, a Janja. Resposta da Casa Civil: “Prezada Cidadã, esclarecemos que o pedido não poderá ser atendido em função do Enunciado CGU nº 02/2023, que afirma: “Os registros de entrada e saída de pessoas em residências oficiais do Presidente e do Vice-presidente da República são informações que devem ser protegidas por revelarem aspectos da intimidade e vida privada das autoridades públicas e de seus familiares, salvo se tais registros disserem respeito a agendas oficiais, as quais têm como regra a publicidade, ou se referirem a agentes privados que estejam representando interesses junto à Administração Pública”.

 

Trocando em miúdos, visitas a Janja no Alvorada não podemos ficar sabendo, ainda que ela seja pessoa pública e mais do que abertamente já deixou claro que tem uma atuação política. No começo de 2023, tomou a dianteira e abriu o mesmo Alvorada para mostrar à imprensa o estado da residência pós-Bolsonaro.

 

Tal protagonismo acabou gerando um fato peculiar na administração pública. A foto de Janja dando entrevista foi usada em documento oficial, uma nota técnica produzida pela Presidência, para relatar os problemas com o mobiliário que foi parcialmente renovado. No embalo, a gestão petista ainda acusou a anterior de dar sumiço em 261 itens que deveriam estar no palácio. Esta semana, soube-se que o que estava desaparecido, apareceu.

 

Semelhanças e diferenças

Se não mostra quem a primeira-dama recebe na residência oficial, como o governo Bolsonaro fazia com Michelle, a gestão Lula adota uma nova regra para dar conhecimento com quem Janja se reúne no Planalto. Em 2023, quem pediu as agendas oficiais, recebeu a lista que incluía até a informação “almoço com o presidente”.

 

Diante da comparação com a gestão passada, o governo Lula difere no discurso pró-transparência, mas, na prática, ainda que tenha exemplos de que vai na direção oposta do antecessor, escorrega. Os 100 anos impostos em pedidos de informação enviados por cidadãos a vários ministros são um exemplo. Outro já foi até motivo de zombaria.

 

O então ministro da Justiça, Flávio Dino, foi vencedor do troféu “cadeado de chumbo” concedido por fórum de entidades que defendem a transparência governamental. Um cidadão pediu acesso a relatórios de inteligência da pasta de Dino. Ele negou. A CGU mandou o ministro entregar. Dino recorreu e a Controladoria mudou de posição e “desdecidiu” fazendo com que os relatórios continuassem em segredo.

 

O caso do Ministério da Justiça foi escolhido como o pior exemplo de 2023 de como um governo pode lidar ou não lidar com a transparência dos documentos que guarda. E costuma ser assim: vez ou outra alguém tem que lembrar à administração que ela não é proprietária dos documentos oficiais. O verbo em questão é guardar e não esconder.

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Opinião por Francisco Leali

Coordenador na Sucursal do Estadão em Brasília. Jornalista, Mestre em Comunicação e pesquisador especializado em transparência pública. Escreve às sextas-feiras.

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